O que é esta coisa chamada de filosofia? O Professor Adler acha que, na última metade do século, ela tem mudado profundamente: já nada mais diz ao homem comum ou enfrenta problemas de amplo interesse humano. O que é ela? Há alguma coisa reconhecível, a filosofia, que tem passado por estas mudanças? Ou a mera palavra "filosofia" tem sido, consecutivamente, distorcida aplicando-se antigamente a uma coisa e agora a uma outra? Claramente Adler não está preocupado com nada de tão superficial como a semântica migratória de uma palavra de cinco sílabas, porém uma palavra ressonante. Na verdade, ele diria que a filosofia é de qualquer maneira a mesma disciplina, apesar das lamentadas mudanças. Para mostrar isto ele podia citar a continuidade da sua história com mudanças. Mas a continuidade é também uma característica da semântica migratória de um pentassílabo. Penso que podemos fazer melhor, avaliando o panorama em transformação, se olharmos mais propriamente para os esforços e actividades vigentes, velhos e novos, exotéricos e esotéricos, graves e frívolos, e deixarmos a palavra "filosofia" cair onde puder.
Aristóteles foi, entre outras coisas, um físico pioneiro e um biólogo. Em parte, Platão foi, entre outras coisas, um físico se considerarmos a cosmologia como uma parte teórica da física. Descartes e Leibniz foram, em parte, físicos. Naqueles tempos a biologia e a física eram chamadas de filosofia natural – foram assim chamadas até ao século dezanove. Platão, Descartes e Leibniz eram também matemáticos, e Locke, Berkeley, Hume e Kant eram, em larga medida, psicólogos. Todas estas luminárias e outras que nós veneramos como grandes filósofos eram cientistas na busca de uma concepção organizada da realidade. De facto, a sua busca foi para além das ciências restritas tal como, agora, as definimos; na altura, também havia conceitos mais básicos e amplos para desemaranhar e clarificar. Mas as dificuldades com estes conceitos e a procura por um sistema, numa grande escala, eram ainda integrais a toda a busca científica. À luz dos nossos dias, e olhando para trás, os mais gerais e especulativos alcances de uma teoria são considerados como algo distintamente filosófico. No entanto, actualmente, o que é perseguido sob o nome de filosofia também tem muito destas mesmas preocupações, quando é o que considero a sua melhor técnica.
Até ao século dezanove, todo o conhecimento científico, com relativa importância, podia ser acompanhado por uma só mente de primeira categoria. Esta situação confortável acabou à medida que a ciência se expandiu e se aprofundou: apareceram distinções subtis e proliferou o jargão técnico, muito do qual é genuinamente necessário. Os problemas de física, microbiologia ou matemática dividiram-se em problemas subordinados que qualquer um, retirado do contexto, surge ao leigo como inútil ou ininteligível: apenas o especialista vê como ele aparece no quadro completo. Actualmente a filosofia, quando contínua com a ciência, também progrediu. Aí, tal como na ciência, o progresso expôs distinções relevantes e conexões que, em tempos passados, passaram despercebidas. Aí, tal como noutros lados, problemas e proposições foram analisados em constituintes que, se tomados isolados, devem parecer desinteressantes ou pior ainda.
Justamente há cem anos atrás, pelas mãos de Gottlob Frege, a lógica formal completou o seu renascimento e tornou-se numa ciência séria. Nos anos subsequentes, um traço saliente da filosofia científica tem sido o uso, crescente, da poderosa nova lógica. Isto tem resultado num aprofundamento dos conhecimentos e num refinar de problemas e soluções. Também tem resultado na intrusão de termos técnicos e símbolos que, a par de servirem os investigadores, tendeu a afastar os leitores leigos.
Outro traço saliente da filosofia científica, neste período, tem sido uma preocupação crescente com a natureza da linguagem. Em círculos responsáveis isto tem sido visto como uma retirada sobre questões mais sérias. Mas, na verdade, é uma exteriorização de escrúpulos críticos que remonta a séculos atrás até aos empiristas britânicos clássicos como Locke, Berkeley, Hume e, mais claramente, Bentham. Nos últimos 60 anos, crescentemente, tem sido reconhecido que as nossas noções introspectivas tradicionais – significado, ideia, conceito, essência (noções não disciplinadas e não definidas) – proporcionam um fundamento extremamente débil e indisciplinado para uma teoria do mundo. Mas consegue-se ganhar controlo através de uma focagem nas palavras, analisando como elas são aprendidas, usadas e são relacionadas com as coisas.
A questão de uma linguagem privada, mencionada por Adler como frívola, é um exemplo para o caso em questão. Filosoficamente tornou-se significante quando reconhecemos que uma teoria legítima do significado deve ser uma teoria acerca do uso da linguagem, e que a linguagem é uma arte social, socialmente inculcada. A importância da matéria foi enfatizada por Wittgenstein e, previamente, por Dewey, mas não é entendida por alguém que se depara com a questão fora do contexto. Seguramente, muita da literatura produzida sob o título de filosofia linguística é filosoficamente inconsequente. Algumas peças são divertidas ou medianamente interessantes como estudos de linguagem, mas têm sido publicadas em jornais filosóficos apenas por superficial associação. Alguns desses jornais, mais filosóficos no propósito, são simplesmente incompetentes. O controlo da qualidade é uma mancha na imprensa filosófica florescente. Há muito tempo que a filosofia tem sofrido, ao contrário das ciências duras, de um irresoluto consenso em questões de competência profissional. Os estudantes do céu são separáveis em astrónomos e astrólogos, assim como os pequenos ruminantes domésticos são separáveis em carneiros e cabras, mas a separação dos filósofos em sábios e excêntricos parece ser mais sensível a sistemas de referência. Isto é talvez como deve ser, em virtude do carácter não regimentado e especulativo da disciplina.
Muito do que foi recôndito na física moderna foi aberto pela divulgação. Estou agradecido por isto pois tenho um gosto por física, mas não posso adquiri-la em estado bruto. Um bom filósofo que seja um expositor competente podia fazer o mesmo com a filosofia técnica corrente. Mas seria preciso talento, porque nem tudo o que é filosoficamente importante precisa de ser de interesse para o leigo, mesmo quando claramente explicado e posto no lugar. Pensemos na química orgânica. Reconheço a sua importância, mas não estou curioso em relação a ela. Do mesmo modo, não vejo por que o leigo deva apreciar muito daquilo que me interessa em filosofia. Se em vez de ter sido chamado para aparecer na série "Men of Ideas", da televisão britânica, tivesse sido consultado sobre a sua viabilidade, devia ter expressado dúvida.
O que tenho estado a discutir sob o título de filosofia é aquilo a que chamo de filosofia científica, velha e nova, pois tem sido a disciplina cuja moderna tendência Adler critica. Mas deste título vago não excluo estudos filosóficos de valores morais e estéticos. Alguns destes estudos, em moldes analíticos, podem ser científicos no espírito. Eles estão aptos, porém, para oferecer pouco no sentido da inspiração ou da consolação. O estudante que, primariamente, se forma em filosofia por conforto espiritual está mal orientado e, provavelmente, não é um muito bom estudante de qualquer modo, dado que a curiosidade intelectual não é o que o move.
A escrita inspirativa e edificante é admirável, mas o lugar para isso é a novela, o poema, o sermão ou o ensaio literário. Os filósofos, no sentido profissional, não têm qualquer peculiar aptidão para isso nem têm qualquer peculiar aptidão para ajudar a sociedade para um equilíbrio, embora todos devamos fazer o que pudermos. O que pode satisfazer estas necessidades perpetuamente urgentes é sabedoria: sofia sim, filosofia não necessariamente.
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Tradução: Eduardo Castro - Professor - UBI
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[CFUL/FCT(SFRH/BD /16755/2004)]
Esta peça foi escrita para o Newsday por pedido de resposta a uma peça de Mortimer Adler. As duas eram para aparecer juntas sob o título acima. Aquando da publicação, em 18 de Novembro, 1979, o que apareceu sob o meu nome verificou-se ter sido rescrito para agradar à vontade do editor. Este é o meu texto não corrompido.
* Quine, W. (1979), "Has Philosophy Lost Contact With People?", in Quine, W. (1981) Theories and Things, (Cambrigre, Mass.: HUP), p. 190-3.