terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lógica, Immanuel Kant (quarta parte)


Voltando ao conhecimento humano, ele é discursivo, isto é, ocorre mediante representações em que aquilo que é comum entre diversas coisas funciona como princípio cognitivo, recorrendo a caraterísticas. Depreendendo-se que reconhecemos as coisas pelas suas caraterísticas e do reconhecer advém o conhecer. E o que é que o autor define como caraterística? A caraterística é apenas uma parte de um todo que constitui o conhecimento da coisa. Sendo dividida em duas vertentes: a) a representação em si mesma e b) como princípio cognitivo de uma coisa. Explicando este último ponto de outro modo, o princípio cognitivo de uma coisa é a uma parte daquilo que constitui a coisa. E aqui podemos encontrar um duplo uso: o uso interno que consiste na dedução, partindo das caraterísticas para chegar ao conhecimento das próprias coisas, e o uso externo, que se baseia na comparação de caraterísticas e das próprias coisas obedecendo às leis da identidade e da diversidade.
Existem ainda diversas classificações para essas caraterísticas. Entre elas, temos as analíticas que se limitam a conceitos parciais do conceito real (que já são pensadas pelo sujeito, pois o conceito já está dado, não gerando qualquer ampliação do nosso conhecimento), enquanto que as caraterísticas sintéticas são o conjunto de conceitos parciais para formar um conceito total possível (só a partir da síntese das várias partes se consegue formar um conceito total possível, desse modo, existe um alargar do nosso horizonte de conhecimento). De seguida, temos as caraterísticas coordenadas que consiste na representação imediata da coisa; enquanto as subordinadas uma caraterística da coisa só é representada por meio de outra. Caraterísticas afirmativas, é o que a coisa é; caraterísticas negativas, é o que a coisa não é. Nas caraterísticas importantes e frutíferas, o que importa é o número e importância das consequências oferecidas pelo princípio cognitivo; ao contrário daquilo que se passa com as caraterísticas vazias e irrelevantes. E, por último, as caraterísticas suficientes e necessárias; suficientes, pois uma coisa é distinta de todas as outras, e necessárias têm que estar sempre na coisa representada; em antigónia às caraterísticas insuficientes e contingentes.
Também outro tema que temos vindo a desenvolver ultimamente é a verdade. A verdade é uma propriedade objetiva do conhecimento, porém se tem por fonte um sujeito é subjetivamente um assentimento, que se divide em duas espécies: a incerteza, que se tipifica pela causalidade e da possibilidade do oposto – como a opinião e a fé –, e a certeza que está associada à consciência da necessidade – saber. A partir das costuras já traçadas, temos três modos de assentimento: opinião, fé e saber. Começando pela opinião, ela é um julgar problemático; a fé é um julgar assertórico; e o saber um julgar apodíctico. Sendo o opinar apenas a consciência de julgar problemática; sendo o assertórico algo que não é necessário e apenas válido para o sujeito, por último o saber que é geral e objetivamente válido, ou seja, que é válido para todos. Na área da opinião o fundamento cognitivo, sem suporte subjetivo nem objetivo suficientes, apenas pode ser visto como juízo provisório e nada mais do que isso. No plano da fé, o assentimento é objetivamente insuficiente, por contrapartida, é subjetivamente suficiente e diz respeito a objetos de que nada se pode saber e aos quais nem sequer se atribui probabilidade, o assentimento é livre e apenas necessário num propósito prático que inclui razões morais. O saber é um fundamento cognitivo, que é objetivamente e subjetivamente suficiente, é ou empírico ou racional, pois advém de duas fontes de conhecimento: a experiência e a razão. Ambas podem ser imediata ou mediata, ou seja, ou não necessita de nenhuma prova, porque é imediatamente certo ou indemonstrável, ou carece de prova. Sendo que as provas podem ser de natureza direta ou indireta, isto é, apagógicas. Fazendo agora uma distinção entre as duas: a certeza empírica é ou originária (experiência própria) ou derivada (consciência alheia, frequentemente discriminada por certeza histórica); certeza racional distingue-se da empírica pela consciência de necessidade.
Mas quando fazemos dos juízos provisórios de juízos determinantes ou princípios, sendo a sua causa a confusão entre fundamentos objetivos devido à falta de reflexão, então, começamos a mergulhar no campo dos preconceitos, cujas fontes podem ser: a imitação, que é tomar simplesmente por verdadeiro aquilo que outros puseram a circular, cujos expedientes são: fórmulas, máximas, sentenças, cânones e provérbios; quanto ao hábito, advém da retenção do nosso entendimento num juízo por razões erradas, e que sucessivamente vai ficando embaraçado e que só por força do tempo se vê obrigado a eliminar o juízo preconceituoso, que dimana dos preconceitos de prestígio (preconceitos de prestígio de pessoa, preconceitos de prestígio de multidão e preconceitos de prestígio da época) ou preconceitos de amor-próprio; e a inclinação que é o uso passivo da razão. Para evitar isto o autor alerta não se reter a juventude na simples imitação, como usualmente acontece.
 A complementar tudo o que já foi revelado anteriormente, surge a temática da dúvida que tanto pode ser originária da existência da possibilidade contrária como, também, pode ser um simples obstáculo do assentimento, que pode ser subjetiva – estado de ânimo – ou objetiva – conhecimento da insuficiência de razões para o assentimento, usualmente designada de objecção. Sendo que a razão contrária ao assentimento de ordem subjetiva chamada de escrúpulo. A dúvida funciona segundo o princípio de tornar incertos determinados conhecimentos procurando demonstrar a impossibilidade de chegar à certeza, como acontece no cepticismo, mas que pode ser útil quando retida na suspensão do juízo e quando conjugada com o método crítico, típico do método de filosofar, que analisa as afirmações e as objecções na esperança de chegar à certeza.
Já no caso da hipótese, entrando na temática da probabilidade, consiste num assentimento do juízo acerca da verdade de um fundamento em virtude da suficiência das consequências. Sendo os requisitos os seguintes: 1ª.) a possibilidade da própria pressuposição, ou seja, a verossimilhança com o intuito de evitar cair na invenção; 2.ª) a consequência, pois só de fundamentos corretos derivam consequências corretas; e 3.ª) a unidade, em que a hipótese deve sustentar-se por si mesma, sem necessitar de hipótese auxiliares.
Avançando para os últimos momentos da obra, encontramos as seguintes secções: 1.ª) dos conceitos; 2.ª) dos juízos; e 3.ª) dos raciocínios; que, para além de desenvolver aquilo que já vem a ser tratado ao longo da obra vai ainda abordar a lógica aristotélica; no último momento, temos como tema a metodologia geral que engloba os seguintes assuntos: a) fomento da perfeição lógica do conhecimento mediante a definição, a exposição e a descrição dos conceitos; e b) fomento da perfeição do conhecimento por divisão lógica dos conceitos; que toma como assunto os conceitos, o seu tratamento, bem como, a sua exposição.     
Concluindo, o conhecimento humano é um conhecimento que recorre às caraterísticas comuns entre diversas coisas, funcionando como princípios cognitivos; e que tanto podem partir do todo para as partes (caraterísticas analíticas) como podem partir das partes para o todo (caraterísticas sintéticas). E apesar da verdade ser uma propriedade objetiva do conhecimento, ela pode ter como fonte uma pessoa e, desse modo, temos subjetivamente um assentimento. Ora se damos assentimento a alguém, podemos facilmente cair num preconceito de prestígio, para evitar isso, recomenda-se o juízo provisório que, pondo em suspenso qualquer juízo determinante, põe no crivo da análise crítica todas as afirmações e objecções com o objetivo de chegar a uma certeza.
Passando para a atualidade da obra, ela ainda hoje permanece atual, basta darmos uma olhadela na metodologia científica.
Bem, caros leitores, terminamos a nossa epopeia anual com esta magnífica obra do pensamento moderno, lamentamos não termos tido mais tempo para uma análise mais digna desta obra, mas por razões de economia de tempo tivemos que proceder desta forma; advertimo-los que estes pequenos textos são fruto de interpretações da leitura das próprias obras e que em nada se compara com a leitura das mesmas. A todos desejo um feliz natal e próspero ano novo, para o ano voltaremos com mais comentários sobre novas obras.
Fernando de Almeida.
            

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Crítica da crítica da crítica




Vivemos acima das nossas possibilidades. A frase é repetida até à exaustão, não apenas pelo governo - que procura, desta forma, legitimar retoricamente os motivos para a sua austeridade -, como por determinados arautos, concubinos e outros comentadores da comunicação social (os opinion makers à portuguesa), como ainda por personalidades como a Isabel Jonet e outros membros eclesiásticos. O que estes ainda não se deram ao trabalho de fazer foi de analisar, do ponto vista formal, lógico, a frase em questão; se se tivessem dado a esse trabalho decerto perceberiam que a proposição que defendem só tem, ou só ganha sentido, por meio do enviesamento ideológico que encobrem.
Ora vejamos, não é viver acima das possibilidades viver o impossível? Por seu turno, viver o impossível é manifestamente impossível, logo, o sentido desta asserção não pode estar contido na frase em si, isto é, considerada isoladamente. Portanto, para podermos compreender o que pretendem significar os que dela fazem, até à náusea, uso, teremos de adentrar, por sua vez, na conceção que estes fazem da realidade que pretendem designar.
É que, de facto, se vivemos até agora como vivemos – acima das nossas possibilidades, como insistem alguns e que não são poucos! - é porque o sistema socioeconómico, mais que o permitiu, o possibilitou, isto é, tornou possível. Agora, vem à boca a questão, por que é que, hoje, já não é possível continuarmos a viver como anteriormente? Como se justifica esta regressão ou “arrefecimento” das condições de vida gerais, que, permitiram, p. ex., a emergência de uma classe média massificada e o Estado Social que tivemos até agora e que hoje está sob ameaça patente? O que vem interromper esse estado de coisas? Se o trabalho social, a produção mundial, com a UE à cabeça, explorada sob a égide capitalista, tornou possível, até este momento de regressão, o nível de vida que tivemos, qual o fator, ou conjunto de fatores, que vêm agora inviabilizar esta realidade?
O que pretendo chamar a atenção é para o facto de a possibilidade de termos tido as condições de vida que até este momento tivemos, não é uma possibilidade do sistema capitalista financeiro mas, antes, e ainda que este primeiro o queria obliterar nomeadamente com a preservação da cisão/relação credor/devedor, do trabalho social. A UE, com todos os seus recursos (tanto naturais como humanos), com a sua capacidade de produção, não precisa que seja o sistema bancário (enquanto linha da frente do sistema financeiro mundial) a fazer parte significativa da distribuição dessa riqueza sob a forma de créditos, isto é, de dívida. A UE, com os recursos e mecanismos que possui, não precisa desta crise. O que está em jogo é a urgência de uma nova racionalidade que possa gerir o binómio produção/distribuição, preservando o enquadramento institucional da UE (enquanto unidade supranacional), sem que as relações - detentores dos meios de produção/detentores da força de trabalho - ou - credores/devedores - se convertam em relações de poder consolidadas e impossibilitem uma distribuição justa do produto global dessa unidade supranacional.
David Santos.

domingo, 25 de novembro de 2012

Lógica, Immanuel Kant (terceira parte)



Continuando o nosso passeio, ainda dentro do horizonte de conhecimento do sujeito, temos um saber que é absoluto e universal – em que os limites do conhecimento humano estão em sintonia com os limites da perfeição humana em geral – ou um saber que é particular e condicionado – que pertence ao horizonte do privado e que está limitado às próprias faculdades inteletuais do sujeito. Isto conduz-nos a diferentes tipos de conhecimentos, que iremos começar desde já a ilustrar: o saber histórico sem quaisquer limites (poli-história) e o conhecimento racional (polimatia). Do alinhar destes dois saberes resulta a pansofia. Por outro lado, o saber histórico comporta em si a ciência dos instrumentos de erudição – a filologia, que é o conhecimento crítico que se debruça na literatura e linguística. E é daqui que surge o literato ou bel spirit que se interessa pelos conhecimentos do gosto que estão de acordo com a moda.
Quanto às ciências, temos o pedantismo e o enfantramento. Enquanto a primeira se ocupa das ciências de escola, restringindo-as no que respeita ao seu uso, o segundo trata de lhe dar uma utilidade pragmática, limitando o conteúdo. Surgindo duas grandezas: a grandeza intensa [que contempla a validade e importância], e a grandeza extensiva [que diz respeito à vastidão, aqui convêm fazermos a seguintes observações: a) o uso do entendimento foca-se no todo e não nas partes; b) no plano lógico, dominar todo o conhecimento que suscite a perfeição lógica quanto à forma. Embora não seja possível prever a sua importância prática quanto à especificidade, mas é possível esperar que exista alguma utilidade; c) não confundir importância com dificuldade, pois um conhecimento pode ser importante sem ser obrigatoriamente difícil. A importância de um conhecimento é justificada pela vastidão das suas consequências. Porém, se as consequências tiverem pouco relevo, então, obtivemos um mero devaneio de conhecimento.
Outro assunto, também ele de interesse, é a verdade. O que é a verdade, perguntam vocês? Seguindo o caminho trilhado pelo filósofo em análise, a verdade consiste no acordo do conhecimento com o seu objeto, consequentemente, o sujeito só pode comparar o objeto porque o conhece, daí segue-se que, o conhecimento acerca de um objeto necessita de auto-confirmar-se. Seguindo um critério formal de verdade que consiste exatamente nesta coerência do conhecimento consigo mesmo, o         qual está imbuído de três princípios de verdade: a) princípio da contradição e da identidade; b) o princípio da razão suficiente; e c) o princípio do terceiro excluído. Já o seu antagónico, a falsidade, se for tomado como verdade chama-se erro. E que pode ter como origem uma segunda fonte de conhecimento, que é a sensibilidade que nos fornece o material que constitui a matéria do nosso pensamento e que se desenvolve segundo leis diferentes das do entendimento e que, por vezes, nos pode levar a confundir aparência com a própria verdade. Deste modo, para evitar tais erros à que identificar essa aparência, que pode ser clarificada com o juízo de outros, claro que se existir diferendo, então, temos indício de erro.
E daqui surgem duas regras: a primeira, é a verdade da consequência, pois a consequência é determinada pelo seu princípio, que é o conhecimento; a segunda, que consiste no seu contrário, que se as consequências são verdadeiras, logo o conhecimento é verdadeiro. Por outro lado, esta influência da sensibilidade leva-nos a tomar por objetivo algo que é subjetivo e que tem apenas aparência de verdade. Para que se evite tal malfeito, o autor recomenda as seguintes precauções: 1) pensamento próprio (modo de pensar ilustrado); 2) pensar na posição do outro (modo de pensar alargado), e; 3) pensar em acordo consigo mesmo (modo de pensar consequente).
Concluindo, verificamos que o pedantismo se ocupa das ciências da escola, por seu lado, o enfatramento procura dar uma utilidade pragmática a essas ciências. Segundo ponto visa a verdade como conhecimento que se identifica com o seu objeto e que se auto-confirma; à verdade seguem-se os seus critérios formais, inspirados nos critérios aristotélicos e a regra de princípios - consequência; além das preocupações relativas à sensibilidade, uma vez que ela nos pode conduzir ao erro.  

Fernando de Almeida.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

The Visitor - um filme sobre ética da globalização



The Visitor (Thomas McCarthy, 2007) é um filme sobre ética da/na globalização. Uma ética que se desenvolve para além dos simples limites do cosmopolitismo, para além da tolerância ociosa e estéril, do baço verniz das convenções, de um multiculturalismo sem multiculturalidade, da hegemonização das formalidades em detrimento da pulsão da alteridade, para além da burocratização, esse universal mecânico, frouxo, não criador.
The Visitor narra a história de um professor universitário de economia que não se reconhece na sua profissão, nas suas habituais funções, no seu vivido quotidiano, naquelas que são as expetativas de vida para um norte-americano branco e viúvo, quarentão intelectual de economia. Em vão que Walter Vale tenta aprender piano – um dos únicos instrumentos musicais toleráveis para o seu “tipo”. Mas não espantará que, mais tarde, se revele um inato talento para o djembê.
A sua vida só principia a mudar quando, por ocasião da necessidade de apresentar em Nova Iorque um livro para o qual nem contribui (ainda que a verdadeira autora tenha tido a magnanimidade interessada de o colocar como coautor), Vale encontra o seu apartamento nesta cidade ocupado por um casal de estrangeiros. Um jovem sírio de nome Tarek e uma jovem oriunda de Senegal chamada Zainab. Alguém, um desconhecido Ivan e que saberia da sua prolongada ausência de Nova Iorque, teria alugado, sem o seu consentimento, o apartamento a este casal. Contrariando as expectativas do casal Tarek e Zainab, Vale demonstra grande transigência perante este cenário de grosseira ocupação da sua propriedade, e, mesmo estes últimos, logo que provada a real pertença da propriedade, imediatamente se conformam à sua nova realidade e se apressam, por meio de mil e um pedidos de desculpas e gestos de embaraço, a fazer as malas. Mais tarde se saberá o motivo para a vigorosa cooperação do casal - estavam ambos ilegais no país.
Tudo ocorre, portanto, nessa, que ainda é esta, América pós 11 de Setembro. Uma América onde as contradições (hipocrisias!) da globalização se tornam ainda mais flagrantes, onde ainda se insiste na retórica das vantagens da abertura das economias dos países em desenvolvimento mas onde os imigrantes oriundos desses mesmos países “em desenvolvimento” encontram cada vez mais as portas fechadas para a realização das suas justificadas expectativas. Uma América constitucionalmente suspensa no que toca a estes estrangeiros, nomeadamente os que não são atestadamente ocidentais.
É sob este delicado contexto que Walter Vale acolhe na sua casa esse casal de estranhos depois de que estes se preparavam para partir. Não o fez por sobranceira comiseração ou piedade orgulhosa. De alguma forma Walter sabia que esse seu gesto enunciava já aquela ansiada rutura radical com a vida que escolhera até aí. 
É com Tarek que o professor começa a aprender djembê. É uma aprendizagem profunda que, no seu paulatino desenvolvimento, o faz comungar com todos aqueles negros e outros árabes do Central Park a tocar para um público ocasional e inteiramente gratuito. É uma formação que o liberta, que tem por efeito o estalar do frágil verniz de uma existência cuidadosamente maquilhada, mas espetacularmente falsa.  
Entretanto, depois do sírio lhe ter oferecido um djembê, Tarek é detido no metro. Tudo não passou de um infeliz incidente, tornado verosímil pela conjuntura xenofobicamente opressora do pós 11/10. De repente, depois dessa catástrofe, passou a ser permitida a detenção arbitrária de todo e qualquer imigrante (nomeadamente, o não caucasiano) que, assim, se descobriram elevados à categoria universal de suspeitos.
Walter não apenas se revolta com esta situação, sabendo da inocência de Tarek e da sua generosidade natural, como, inclusive, se voluntaria para acompanhar todo o processo, pagando um advogado e servindo de intermediário entre este, a namorada do jovem muçulmano e, mais tarde, a mãe de Tarek. Já que ambas não o podem visitar no centro de detenção pelo facto de estarem, igualmente, ilegais no país.
Mouna, a mãe do sírio, é uma mulher pujante, de carácter notável, que é forçada a regressar de Michigan após ter tentado contactar o seu filho durante três dias seguidos, e, pela qual, Walter rapidamente se enamora. Fugira de Síria, levando o seu filho, precisamente por motivos de perseguição política (que conduziram à morte na prisão do seu ex-marido, um ativo jornalista) e, agora, no “país da liberdade”, vê-se confrontada com a mesma realidade, desta feita, com o bem-estar do seu filho posto em causa.
Apesar dos esforços do economista e de Mouna, não conseguem evitar a deportação de Tarek. Que, aliás, Walter só toma conhecimento no próprio dia em que Tarek fora, sem aviso e com todo o expediente, deportado. Esse tratamento revolta Vale que, relevando a sua impotência contra esse estado de coisas, exterioriza a sua cólera, já impossível de ser contida, contra dois funcionários negros impávidos e serenos do lado de lá do guiché de informações do centro de detenção.
É com amargura que este se despede de Mouna, que não mais pode continuar nos Estados Unidos sabendo que o seu filho já está na Síria. Ambos sabem da elevada improbabilidade de se tornarem a ver e, consequentemente, de realizarem as suas existências incompletas por via de uma pedagogia de sucessiva abertura ao outro; não o outro fantasmático ou o outro que, implacavelmente estereotipado, não passa do mesmo, mas o outro concreto, incarnado, o outro outro. 

O filme termina com Walter a tocar vigorosamente djembê num banco na estação do metro. De camisa branca desfraldada, sem gravata, rodeado por dois negros, o barulho do metro no seu constante vai e vem, um homem branco, atravessando aquele cenário, vagamente indiferente, apressado, empregando uma discreta gravata cinzenta, barba bem aparada, um simples homem de negócios, talvez…

David Santos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Bodes Expiatórios Contemporâneos


Sabemos através das dinâmicas de grupo que nos chegam da psicologia que criar um bode expiatório não é tarefa difícil. Mas, de que modo a actualidade gera estes bodes expiatórios? Falar de sacrifício como estrutura perene e eficaz de um ritual é reconhecer-lhe, na actualidade, estruturas que se metamorfosearam. Ainda que existam na nossa sociedade bodes expiatórios estes perderam com a complexificação social ao longo da história a sua função catártica e chegamos ao que René Girard denomina, ao longo das suas obras, de «crise sacrificial», isto é, quando as vítimas, que deveriam expulsar a violência da sociedade, deixam de possuir este papel e a violência se perpetua na sociedade. 
O sacrifício, que era em sociedades antigas a última palavra da violência e capaz de manter uma paz provisória na sociedade, possuía um modo próprio de existir, pois era devido à vítima sacrificial ser escolhida aleatoriamente, mas não irracionalmente, que ela não podia jamais devolver a violência à sociedade através do acto de vingança (Cf. Alfredo Teixeira). Em Édipo Rei, vemos exatamente este papel catártico do sacrifício onde a vítima se escolhe a si mesma e que é simultaneamente desconhecedora da sua tragédia situando-se Girard numa análise distante à que Freud realizou na sua psicanálise (Cf. Freud).
A crise sacrificial, que ocupa o lugar do sacrifício nas sociedades modernas, é a expressão de que se no início o sacrifício se apresentava como obrigação do sagrado ela aparece, por outro lado, como uma actividade criminal que engloba riscos de similar amplitude aos que estão envolvidos na obrigação sagrada. A constituição do poder jurídico condena o sacrifício como actividade criminal a menos que seja legitimado através da criação de outras instituições humanas substituidoras – por exemplo o direito penal das sociedades modernas – desta primeira instituição humana que era o sacrifício. O sacrifício toma como meio a utilização da violência, sobretudo física numa primeira instância, que ao longo da história se foi transformando cada vez mais em formas dissimuladas e pouco claras. Actualmente, a interposição de mediações técnicas entre as vítimas e os seus sacrificantes podem negar uma eventual violência e camuflar esse registo levando a um disfuncionamento do acto sacrificial. Contudo, negar a violência, quer num registo moderno ou primitivo, é afirmar o seu poder metamórfico pelo qual ela vai sempre encontrando uma e outra vítima sobre quem se exerce. A conduta sacrificial que nas sociedades antigas permitia expulsar a violência através do bode expiatório, como será a seguir demonstrado, é impossibilitada qua talis pelo sistema jurídico presente nas sociedades modernas que se apresenta como substituto racional daquela. O sacrifício já não é um instrumento de prevenção contra a violência pela sua impossibilidade de se apresentar como um ritual sacrificial, pelo menos de modo claro, sem mediações técnicas. A que se deve então esta impossibilidade? Em especial porque o sistema jurídico compete directamente contra o sistema sacrificial por aquele ser exactamente um outro modo sacrificial metamorfoseado (p.ex. o mito da pena, em Ricoeur). O sistema jurídico funciona na actualidade como um filtro, em grande medida, da violência física directa que fazia o sistema sacrificial do bode expiatório funcionar. O sistema jurídico-penal substitui o sistema sacrificial por este ser mais efectivo como legitimador da violência. O sistema jurídico-penal ao actuar de modo legítimo no plano social irá colocar o mecanismo sacrificial como ilegítimo. Existe uma desmistificação do sacrifício e este passa apenas a ser possível pelo sistema jurídico-penal – a justiça pelas próprias mãos, legitimada pelo mecanismo sacrificial quando a multidão tinha uma posição unânime, não é permitida neste novo sistema.
Resulta assim, desta crise sacrificial, a proliferação da violência em formas dissimuladas as quais invadem a sociedade ao serem legitimadas pelos diferentes modos de poder (poder político, económico, social, científico, tecnológico, etc.): «onde quer que a violência esteja presente a impureza sacrificial estará presente.» (René Girard).


  Márcio Meruje, O Mito: A Voz Desconhecida do Real?
Uma leitura de René Girard, Congresso Internacional , Universidade Aveiro - Maio 2011.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O equivoco do fim da história.


E se o estranho e atabalhoado anúncio do fim da história não pretendesse significar, literalmente, o fim da história. Antes sim, sintetizasse uma recusa categórica às retóricas messiânicas de inauguração de um novo começo, de uma nova história que emergiria à revelia da tradição e das estruturas vigentes. Enfim, e se o anúncio do fim da história nada mais ousasse que não ditar o fim dessa espécie de utopia – de herança cartesiana - da “revolução permanente”, que lança as suas raízes numa subjectividade que se crê de pensamento e vontade ilimitadas, que é exclusivista, que se julga dona e senhora do seu redor. Se assim entendêssemos o fim da história perceberíamos que os fins não justificam os meios, que a projecção arbitrária do futuro não justifica a condenação brutal do presente; que as revoluções, a partir de agora, devem ser “silenciosas”, que só os meios justificam os fins, que são estes que autenticamente forjam a história, lhe dão sentido, e não o inverso. Urge portanto trabalhar e aprofundar os meios que produzem futuros, "trabalhar a esperança", democratizar a democracia, aprofundar sucessivamente a esfera pública, capacitar os indivíduos politicamente incapacitados, abrir (não fechar) a racionalidade discursiva que compromete as vontades particulares.

O retorno ao futuro não está no regresso a um suposto imaculado começo antes do “pecado original”, mas no amadurecer perene da nossa capacidade colectiva de autodeterminação.    

David Santos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Lógica, Immanuel Kant (parte dois)


Na sessão anterior, abordámos a temática da lógica enquanto uma ciência que racionaliza tanto quanto à forma como à matéria, e que faz uso de leis necessárias do pensar para as aplicar aos objectos em geral e avaliar a razão geral. São exactamente essas leis necessárias e, por isso, a priori, que vão ser pertinentes para o tema que vamos tratar a seguir, que é: o conhecimento geral.
O nosso conhecimento geral possui duas referências: a primeira delas é o objeto, a segunda é o próprio sujeito que conhece pois tem consciência, condição sine qua non de todo o conhecimento em geral, da representação do objeto. Contudo, para existir este conhecimento tem que existir uma distinção entre a matéria e a forma. A matéria refere--se ao objeto. Ainda dentro da temática do conhecimento do objecto, destacam-se a intuição - o avistar do objeto, sem saber ainda qual a sua finalidade - e o conceito - em que o sujeito já é conhecedor da finalidade do dito objeto. Deduzindo daqui, podemos observar que as intuições têm a sua origem na sensibilidade, já os conceitos têm a sua origem no entendimento; sendo a primeira faculdade da ordem da recetividade, ou faculdade inferior, enquanto a segunda pertence à faculdade da espontaneidade, ou faculdade superior. É desta dissonância de faculdades de conhecimentos que se vão reflectir, respectivamente, na perfeição estética e na perfeição lógica. A perfeição estética diz respeito à coerência do conhecimento e o próprio sujeito, cuja fonte é a própria sensibilidade; não se pode, portanto, validar de forma universal e objetiva as leis de um conhecimento elaborado a posteriori. Já na perfeição lógica, temos um acordo entre o objeto e o conhecimento do qual se podem formar leis universais e que podem ser avaliadas mediante leis estabelecidas a priori.
Passando para os limites do nosso conhecimento, é impossível conhecer todas as coisas, daí a necessidade de se ter um limite. E como é que o podemos determinar? Segundo Kant a diversidade e profundidade de todo o conhecimento dependem dos interesses e capacidades do sujeito que o pretende adquirir. Abordando este assunto de uma forma mais concreta, o horizonte de conhecimento pode ser determinado de três formas: 1.ª) Logicamente: faculdades cognitivas em relação ao interesse do entendimento. Saber o limiar dos nossos conhecimentos e em que medida é que estes nos podem ser úteis; 2.ª) Esteticamente: segundo o gosto, de acordo com o interesse do sentimento, e aquele que tem a estética como horizonte tenta instaurar uma ciência em acordo com o gosto do público ou a aquisição de conhecimentos que podem ser transmitidos a todos, por outras palavras, transformando a estética numa ciência popular; e para finalizar, 3.ª) Praticamente: aqui o horizonte é delimitado pelo interesse da vontade e utilidade de certos conhecimentos na sua vertente pragmática, como o conhecimento de valores morais ou mesmo valores éticos.
 Resumindo, o horizonte de conhecimento diz respeito àquilo que o Homem pode, deve e lhe é permitido saber.       
                                                                                                                                                                                  Fernando de Almeida

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O PREC "Liberal" I



Não creio ser abusivo denunciar o intento, verdadeiramente revolucionário, deste governo, em alterar, fundamentalmente, a estrutura produtiva/económica do país até aqui vigente, e, com isso, a própria estrutura estatal. Mas, e com a proeza de, ainda assim, não se enredar em paradoxos e contradições, no que se refere à perpetuação de certos elementos "conservadoristas" que escapam ilesos a este PREC "liberal". 
Deste modo, o governo de Passos Coelho tem conseguido reduzir o Estado social a um Estado social mínimo, ainda que, e lá vêm as contradições aparentes, não tenha "atacado", com a veemência exigida pelas exigências de equidade austeritária, nas tais "gorduras" do Estado - que em período eleitoral tão bem as indicava - e ainda tenha tido o desplante (neste último comunicado de sexta-feira de 7 de Setembro) de adiar prometendo - mas não dizendo o quê, nem o como, nem o quando destes cortes - tal propósito. Assim, e sem qualquer passe de alquimia, o governo consegue conjugar um estado social mínimo - que subverte, como referiu Bagão Félix em reacção, o regime previdencial - sem, nesse acto, reduzir seja o que for naquilo que faz deste um estado "gordo". As PPP´s perpetuam-se no seu canibalismo auto-regenerante; as fundações e empresas públicas, permanecem, no seu essencial, intocáveis; e, monopólios naturais, como a EDP, a auferir as rendas criminosas - tendo em conta o estado público da nação - que auferem. Quer dizer, perante os tumultos da revolução "neoliberal" (que precariza todos os domínios da vida pública, invertendo, inclusive, os mecanismos de reciprocidade onde assenta o chamado Estado Social - repare-se que à subida da taxa de contribuição para a Segurança Social não corresponde nenhuma garantia por parte deste serviço; o dinheiro, desta forma extorquido, não tem o carácter de uma promessa de um futuro estado de bem-estar garantido - como as pensões sociais asseguram), o estado clientelar, a que nos habituaram 10 anos de governo de rotação de eixo central, prevalece sem mácula nem comedimento.
E é assim que, face ao plano de reestruturação do tecido produtivo português, podemos por ora admitir, nocivamente dependente do mercado interno, o governo volta-se a encher de boas intenções, mas, uma vez mais, de más práticas - descontando, com toda a minha a benevolência possível e por agora, a própria crítica a esta orientação almejada- já que, se a descida da TSU para as empresas favorece, decerto, o capital exportador (que não tem os problemas de retraimento no consumo que o nosso país tem - já que procura consumidores no resto do globo), quem mais beneficia, pela universalidade incondicional da medida, são precisamente as maiores empresas portuguesas (presentes no PSI 20) e que, por este meio politicamente legalizado, apenas robustecem a sua postura oligárquica, sem, no entanto, trazerem qualquer mais-valia, seja em termos de crescimento da riqueza nacional, redistribuição dessa riqueza, diminuição da taxa de desemprego... Somando ainda o facto essencial de, assumindo que quem beneficia com as medidas anunciadas na sexta-feira são as empresas exportadoras, o motivo utilizado para as justificar (a criação de emprego) é mais que falacioso, redondamente falso. Pois que, a criação desse novo tecido empresarial (em detrimento do que nos trouxe até aqui), e consequente contratação laboral, está tão só dependente do tal investimento financeiro ao qual não temos acesso neste momento. Assim, as únicas empresas a beneficiar da redução das contribuições para a SS são as que já existem e têm o seu número de trabalhadores assegurado. Como vemos, mesmo no que se refere à revolução (mais que reforma) da estrutura produtiva do país, o governo, mais do que ficar a meio caminho, permanece enredado no caminho dos outros anteriores governos: beneficiando os mesmos (poucos), prejudicando os mesmos (quase todos). 
David Santos.

sábado, 25 de agosto de 2012

A Opinião Pública enquanto categoria política


A opinião pública é uma categoria política. Nesse sentido, ela não existe. Ainda que tenha a pretensão à universalidade, no sentido em que repousa na expressão simbólica de uma pretensa “vontade geral”, esta opinião pública é constituída, tão só, pelos interesses particulares dos mais diversos e diferenciados atores sociais assumidos como tais e tornada publica, de forma hegemónica, pelos meios de comunicação de massa.
Sendo uma categoria política a aparente contradição que esta encerra e que se traduz pelo facto de se posicionar, pretensiosamente, como a “voz do povo”, a expressão retórica da vontade geral, mas, ser, na realidade, resultado da emergência na esfera pública (dominada pelos media) de assuntos e/ou motivos de agentes singulares (por maior que seja o número destes agentes) com os seus interesses particulares. É uma contradição imediatamente resolvida se a encararmos sob o ponto de vista do seu posicionamento performativo. Assim, a opinião pública não é da ordem da falsidade ou da verdade, também pouco importa defini-la sem nos contradizermos, não importa, portanto, a sua objetividade. O que importa sim é que esta (a opinião pública enquanto categoria política) surta efeito eficiente nos jogos de poder e dominação (nomeadamente entre governados e governantes e por esta ordem evocada) que ocorrem de forma imanente em dado espaço social (p. ex., o território de um Estado-nação).
A opinião pública é, portanto, e surge assim, como o contraditório difuso (mas nem por isso menos eficaz), e sempre em risco de emergir, contra uma racionalidade maquiavélica, onde a arbitrariedade e/ou o livre-arbítrio do príncipe (enquanto representação do homem político, com dominação sobre um número significativo de outros homens) é elevada à categoria absoluta, sempre que o que estiver em causa ser o poder pelo poder.
David Santos.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Lógica, Immanuel Kant


No ano de 1765, foi publicada esta obra que se inspirou nas lições de lógica do manual de George Friedrich Meier intitulado Auszugaus der Vernunftlehre editado em 1752, procurando conciliar com as suas próprias lições. Esta obra introduz uma doutrina elementar que se move sobre três eixos essenciais para reger o pensar, e são eles: os conceitos, os juízos e os raciocínios. Outro ponto da sua máxima importância é o objetivo desta obra, que se fixa em dar resposta às seguintes questões: Que posso fazer? (Sentido prático), Que devo fazer? (Sentido ético), Que me é permitido esperar? (Sentido religioso) e Que é o homem? (Sentido antropológico). A finalizar esta introdução deveremos ainda revelar que esta obra tem um carácter propedêutico, cujo epicentro é uma lógica geral, simples e sistemática de cariz científico.
É neste momento, e em função do título, que fazemos esta pergunta: o que é a lógica? Para o autor tudo o que se passa na natureza decorre segundo regras, porque a irregularidade é produto da nossa ignorância. O mesmo diz respeito às nossas faculdades numa fase inicial, em que aos poucos e com o preencher da experiência chegamos à sua percepção; existindo, assim, uma passagem para um plano mais abstrato o que exige um grande esforço devido à familiaridade com os sentidos. Nesta operação de abstracção o entendimento obedece a certas e determinadas regras, das quais ele próprio é produtor. Mas, se o entendimento produz regras, então com que regras é que ele se desenvolve? Essas regras dividem-se em contingentes e necessárias. As regras contingentes, referem-se ao uso de uma parte desse mesmo entendimento, isto é, é contingente o foco num ou noutro dado objecto do conhecimento, o qual esta associado a regras particulares que provêm da experiência (a posteriori). Quanto às regras necessárias, como o próprio nome induz, são regras que têm de estar obrigatoriamente no campo do entendimento, e são independentes dos objectos particulares do pensar, assim, devem ser consideradas a priori; as regras a priori são independentes da experiência, sendo por isso condições necessárias ao uso do entendimento em geral e que toma como objecto de estudo a simples forma. E é aqui que a lógica surge, já não como uma potência, mas efectivamente como ciência que estuda as regras universais e necessárias ao entendimento.  
Então, como é que a lógica, enquanto ciência, pode ser vista? Em primeiro lugar, pode ser vista como fundamento das outras ciências e como propedêutica do uso do entendimento, não podendo ser nenhum órganon [sendo que o órganon implica a noção de objecto de conhecimento]. Noutro plano, a lógica funciona como correctora e apreciadora do conhecimento em geral, funcionado como uma peneireira, que depura os dados que recebemos pela via dos sentidos. São justamente estas características, a de analisar e a de corrigir, e para as quais são necessárias leis puras a priori, que fazem da lógica um cânon que visa as regras de como devemos pensar, isto é, o procedimento de pensamento. O que se opõe ao pensar para si que é algo de subjectivo, pois foca-se em leis contingentes.
A lógica deve ser entendida como uma ciência racional quanto à matéria, pois como as regras são a priori que têm como fonte de estudo a própria razão o que por conseguinte resulta num auto-conhecimento do entendimento e da razão apenas e tão só quanto à sua forma. Mais, a lógica é uma doutrina que se ocupa das leis universais e necessárias e dos princípios a priori para validar regras. Para terminar, temos a distinção entre a lógica transcendental, cujo objeto representa o objecto do simples entendimento, enquanto a lógica representa os objectos em geral.
Concluindo, a explicação do conceito de lógica é a seguinte: a lógica é uma ciência que racionaliza tanto quanto à simples forma como à matéria. É a priori pois centra-se nas leis necessárias ao pensar relativamente a todos os objectos em geral da razão geral; e não da razão subjectiva e dos objectos em particular.   

Fernando de Almeida.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A Trilogia de Nova Iorque ou o anti-romance


A Trilogia de Nova Iorque é uma ficção sobre a ficção, uma narrativa auto-destrutiva, um anti-romance. Nesta obra a iminência de implosão do eventual sentido da história identificado pelo leitor é uma constante. Nunca sabemos quando o autor nos vai trair, quando, e sem o expectarmos, este resolve virar as cartas para cima. Pois que ficcionar é tão só persistirmos em nos mover à superfície das coisas e das palavras. E Paul Auster (outra ficção!) convoca-nos insistentemente a este grau zero da compreensão. Onde as palavras não pretendem significar coisa alguma, qualquer objecto real, dado estado de coisas, que seja. Não é, portanto, o mundo prático, o mundo da vida, onde o sentido das coisas, o real, nunca é suspenso, nunca é posto em causa. Aqui, neste mundo para além da dúvida, uma maça é uma maça, um sapato é um sapato, e a veracidade das coisas é atestada por uma espécie de consenso tácito; quando alguém chama maça a uma pêra é imediatamente corrigido, e quando dois ou mais interlocutores não se entendem quanto à designação de dado objecto ou realidade, das três uma: ou uma terceira personalidade, confirmada como autoridade, resolve a contenda; ou os interlocutores chegam, por necessidade e por meio do conflito, ao tal consenso, dissertando sobre a melhor opção; ou, ainda, não se consegue, de facto, atingir tal consentimento e o conflito permanece em aberto, pois que os interlocutores discordantes colocam permanentemente em causa a utilização de dado conceito para representar dada realidade. 
Mas este é um mundo frágil, sempre em risco de se desmoronar. Quando as palavras principiam em  se desagregar das coisas o sentido do real colapsa. Dizer que me chamo Paul Auster, que sou escritor, que tenho mulher e um filho, não quer significar coisa alguma. Não é uma questão de verificabilidade ou falsificabilidade. Posso ser, verdadeiramente, Paul Auster e ser escritor, mas isso diz mais sobre o como os outros me observam e como eu mesmo me compreendo através dos seus olhares ou juízos, do que sobre aquilo que sou para mim mesmo.
Vivemos no limiar do real. Nunca conseguimos saltar para o outro lado. Tudo o que sabemos sobre nós próprios e sobre os outros é o resultado de construções sociais, de uma Torre de Babel sempre por acabar, de relações de poder e saber. 
As coisas não têm incrustadas no seu ser as palavras que as esgotam. Vivemos no limiar do real. Eu chamo-me David Santos, tenho 25 anos, fui eu que escrevi esta peça e, no entanto, o que isto significa? Acrescentar o número de identidade, o número de contribuinte ou o número de segurança social, será que me esgota? Afirmar que a maior parte do meu corpo é composto por água; que nasci em Lisboa; que gosto de poesia; que menti sobre tudo o que escrevi até aqui...
E tu? Tu és o Paul Auster? És escritor, és americano, tens uma mulher e um filho? 
Se eu pudesse chegar até ti, como Blue, certamente perderia as minhas forças e, decerto, desmaiaria. E, no entanto, tu escondes o rosto da fatalidade, a qualquer momento podes emergir. Tu és quem me condena porque não te compreendo, porque as minhas palavras sobre ti não me libertam de ti. Tu és o espaço negado, o espaço que me recusa. Tu és o anti-espaço e a Trilogia de Nova Iorque é um anti-romance. 

David Santos.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Averróis, Da Harmonia entre Filosofia e Religião e os "Espíritos que Assentem"

 Linha Geral: Averróis foi um exímio comentador islâmico de Aristóteles. Nasce em Córdoba a 1126 e morre em Marrocos a 1198. O nome Averróis é a tradução latina de Ibn Rushd, para além de jurista, Averróis exercia medicina e filosofia entre muitas outras ocupações. Na sua obra surge um apelo à interpretação do texto religioso, conciliando fé e razão. No decorrer do texto denota-se ainda a importância "dos três espíritos que assentem".


 O Discurso Decisivo de Averróis visa a união entre filosofia e religião, revelando-se, no seu contexto, uma defesa da harmonia entre Islão e filosofia. A filosofia é estudada na medida em que a mesma é permitida, proibida, ou prescrita de acordo com a lei Islâmica, o Alcorão. No Islão os actos são classificados pelo direito em cinco categorias, a saber: “obrigatórios”/“recomendados” - prescrição; “permitidos” - aprovação; e ainda “reprováveis”/“proibidos” - proibição. À luz da Lei religiosa, o estudo da filosofia é permitido, prescrito ou proibido? Aqui se debruça Averróis.
 Na sua Fatwa(1), Averróis define a Filosofia como sendo o estudo das coisas existentes, bem como a consequente reflexão sobre as mesmas, na medida em que estas são prova da existência de Deus. Averróis atribui deste modo um valor extraordinário à Filosofia, dado que esta permite conhecer mais e melhor o criador - quanto mais se conhecer das coisas existentes mais conhecemos do criador (assim como quanto mais conhecemos da obra mais conhecemos do autor).
 Segundo o autor (e neste sentido corre a sua defesa de harmonia) o Alcorão prescreve o uso da Filosofia, e isto pode ser ilustrado com passagens da própria escritura Sagrada, nos momentos que que a última incita à reflexão, à autonomia racional do leitor. Desta feita, o que é a Filosofia senão um conhecimento superior, que usa o silogismo demonstrativo e exorta para a reflexão, com o estudo e prática da lógica?
 Como comentador de Aristóteles, Averróis defende e levanta obrigatoriedade relativamente ao estudo das obras dos antigos, a partir delas poderemos aceder ao estudo superior e necessário da lógica. É uma relação de intensa necessidade, a da via da Verdade perante os saberes lógicos.
 É aqui que transitamos para a antropologia, quando Averróis refere e caracteriza os tipos de espíritos, no que diz respeito à interpretação e assentimento do texto sagrado: 1) Espíritos Retóricos, assentem com emoção, com paixão e medo; 2) Espíritos Dialécticos, que dão o seu assentimento partindo da verosimilhança e probabilidade; 3) Espíritos Demonstrativos, que assentem num sentido esotérico, ao contrário dos outros dois (sentido exotérico). A Verdade é Una, e o conhecimento demonstrativo não levará à contradição, isto é, a Verdade não contradiz a Verdade. O portador do conhecimento demonstrativo deverá interpretar a sagrada escritura, desvelando aparentes contradições. O conhecedor da lógica, o filósofo, insurge-se deste modo como o espírito "mais apto" a interpretar o Alcorão, sendo utente do silogismo demonstrativo. Não é possível estabelecer consensos a partir da interpretação metafórica, e dado que a demonstração implica a Verdade una, é essa que deverá ser usada pelos que são portadores de tal conhecimento. Todos os que elevarem a interpretação metafórica em detrimento da interpretação demonstrativa, e podendo aceder a esta última, estão a ser infiéis. Nem todos podem aceder ao mais superior tipo de conhecimento, seja por deficiência de natureza ou qualquer outra razão. Não obstante, os que conseguirem, assim deverão levar a sua interpretação. Pergunta-se, deverão as interpretações ser expostas às massas? Talvez não, poderá criar-se, ao invés de pessoas conhecedoras, pessoas moralmente corruptas e infiéis - quando o conhecimento se transforma em poder, no seu lado mais negro.
 Assim se expõe uma harmonia que concilia religião e filosofia, fé e razão. Um homem imbuído de conhecimento opta por fazer uma pausa após as palavras de Deus.

 (1) Fatwa., Parecer jurídico, de onde decorre uma sentença, e por isso “discurso decisivo”.

 Bibliografia:
- AVERRÓIS, Discurso Decisivo sobre a Harmonia entre a Religião e a Filosofia (trad. Port. de Catarina Belo), Lisboa, 2007



Luís Mendes

domingo, 24 de junho de 2012

Adolf Hitler, A Minha Luta (Mein Kampf)

A razão para abordarmos esta obra é, na minha perspetiva, o de se conhecer a base de um movimento racista, como o nazismo ou outro movimento com os mesmos princípios ou similares. Mais, pretende-se suscitar a curiosidade para a leitura e interpretação desta obra, e, eventualmente, a criação de anticorpos contra este tipo de ideologia.
Começando por falar sobre o autor, Hitler nasceu na Áustria, na localidade de Braunau am Inn, em 20 de Abril de 1889 e faleceu em Berlim aquando da entrada do Exército Vermelho na cidade em 30 de Abril de 1945 (muitos acreditam que se tenha suicidado). Apresentações feitas, surge-nos a questão: como é que esta personagem conseguiu chegar ao poder na Alemanha, um dos países mais instruídos da Europa? Uma boa parte da resposta pode ser encontrada no contexto, pois, nessa época, após a derrota da Primeira Guerra Mundial, o país vivia um momento de extrema pobreza. Mesmo aqueles que possuíam um grau académico superior (médico, engenheiros, etc.) eram obrigados, no extremo, a procurar comida no lixo, enquanto que os únicos que pareciam escapar à sina eram os comerciantes judeus que expunham os seus produtos na rua. Tal diferença dando espaço para a criação de discursos anti-semitas.
É sobre este campo “fértil” (numa perspectiva cínica) que Hitler vai lançar esta manufatura, escrita durante o tempo de cativeiro em 1924 com o intuito de revelar o propósito e ideologia do seu partido, assumindo um carácter autobiográfico. Por outro lado, não devemos esquecer que esta obra segue uma finalidade propagandística, que é notória quando Hitler se refere a Bismark, fazendo uma comparação entre a sua empresa e as suas ambições aos feitos e ambições do Chanceler de Ferro. Desta comparação resultando o culto da imagem do chefe. Podemos equiparar isto ao culto de certas personalidades religiosas, dando especial cuidado à imagem do messias que vem na sua jornada pregar a palavra, em perfeito paralelo com o que sucede hoje com os líderes políticos. E é com base nesta primeira esfera que se desenvolve o primeiro grande tema do livro, a propaganda, ao qual se junta um segundo complementar, o do bode expiatório.
Iniciamos a nossa marcha pela propaganda, que, segundo o autor, deve ser direcionada para a grande massa e deve cumprir com o objetivo a que se propõe, como exemplo disso temos a propaganda de guerra alemã durante a primeira guerra mundial que ridicularizava o inimigo, dando a sensação de invencibilidade que era desfeita assim que um soldado desta frente caia morto. O que, segundo Hitler, era um erro porque tornava o cenário de guerra algo fantasioso, e, este, contrasta isso com a alternativa da publicidade do próprio inimigo, em que nessa publicidade os ingleses viam nos alemães um povo bárbaro, dando-lhes mais ânimo e vontade para lutar, além de os não deixar cair no engano da invencibilidade. Mudando deste episódio mas continuando dentro do tema, o livro busca desprestigiar os opositores políticos do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, colocando-os como co-responsáveis pela Alemanha ter perdido a Grande Guerra e como oradores ignorantes e ao serviço dos judeus, além de serem considerados pouco enérgicos para a prática de soluções (na gíria popular: têm muita parra para pouca uva).
Quanto ao segundo ponto, e complementar do ponto anterior, o povo judeu é para Hitler o bode expiatório ideal. Primeiro, são responsabilizados pela derrota da Alemanha durante a guerra devido à sua imprensa, depois pela crise económica do país e, por último, na corrupção do próprio espírito alemão. Segundo, Hitler aproveita as desigualdades sociais, e o ódio que isso gera, para criar um alvo que está numa escala social mais elevada, por outro lado, a intensidade deste ataque deve-se ao facto do próprio autor considerar o seu povo de estupido e ingénuo para ser manipulado. Como último ponto, Hitler afirma que para um movimento se elevar sobre outro tem que ter presente uma ideologia: a auto-sustentabilidade da Alemanha e da superioridade da raça ariana, o que conduz para a expansão territorial da Alemanha (espaço vital) e à eliminação das raças consideradas inferiores, respetivamente.
Como já é tradicional, interpelamos o leitor com algumas questões. Atualmente, e estando nós situados num cenário de crise, teria um movimento desta índole a capacidade de angariar adeptos? E se tem, era capaz de ganhar eleições? E se um movimento destes chega ao poder, será que mediante a repressão e a prosperidade económica conseguiria comprar o silêncio e a passividade geral da população, como observamos na China?


Fernando de Almeida.

sábado, 9 de junho de 2012

Biocentrismo ou antropocentrismo primitivo?



Talvez possamos fixar temporalmente, naquilo que designo aqui como a emergência da consciência ecológica, a segunda metade do século XX até aos dias de hoje, reconhecendo ainda o efeito de uma alteração paradigmática que está longe de acabar. Podemos também assumir que, em certa medida, esta preocupação generalizada com o ecossistema, o "nascimento" de uma ética ambiental, coincide com a emergência de uma civilização pós-material que, não estando tão preocupada com o imediatismo generalizado da sua sobrevivência – devido, p. ex., a instabilidades existenciais sistemáticas como a fome, a doença, a guerra, ou tudo isto em conjunto e se provocando – faz surgir uma consciência “nova”, preocupada, p. ex., com o bem-estar social (e não só com o bem-estar individual, egoísta, exclusivista, autocentrado!), com a harmonia, com a estética ambiental, com a distribuição da riqueza, entre outros aspetos de pendor, digamos, holístico, muito agradáveis e reconfortantes.    
Por meio destas condições - que, por sua vez, geram novas preocupações, novos problemas sociais - portanto, o antropocentrismo é emancipado em direção àquilo que se designa contemporaneamente (pós-modernamente!) por biocentrismo. O problema é que - e não negligenciado de todo o problema da escassez, da sustentabilidade do planeta e etc. – o biocentrismo nunca pode deixar de ser reduzido ao antropocentrismo de onde partiu. Quer dizer, o conceito de biocentrismo, ou, melhor, a sua imagem, o seu entendimento vulgar e massificado (quase elevado a categorias religiosas) é apenas uma representação grosseira, primitiva, de um antropocentrismo também ele primitivo. Assim, há um salto significativo, talvez epistemológico, entre organizar os recursos naturais e, mesmo, interiorizar uma ética não especista (como diria Peter Singer) ou ecológica, consoante os interesses humanos e a sua evolução em termos de alargamento da “esfera ética”, e, por outro lado, sustentar, com certa violência e dogmatismo, uma representação grosseira, primitiva, de um modo de organizar a sociedade que é radicalmente contra-estrutural, isto é, contra o ponto ou momento civilizacional de sociedades como a nossa, onde as mudanças profundas chocam sempre com a oposição vincada da tradição e, a única maneira de contornar, a curto prazo, esta oposição é, precisamente, por meio da violência, da violência física.   
Advertia-nos o filósofo francês Serge Latouche, aquando da sua entrevista ao jornal Público (entrevista já citada neste blog), que é necessário a sociedade defender-se de quaisquer “ecofacismos” (depois de, talvez, termos de sair da sociedade de consumo à força) que são, no meu entender, precisamente motivados por representações grosseiras como as que subsistem associadas ao conceito de biocentrismo. Podemos mesmo relacionar esta representação à imagética, p. ex., do Éden terrestre – que é, por ventura, uma coisa bastante religiosa, de índole bíblica - onde os passarinhos, os leõezinhos, as formiguinhas, as plantinhas e os homenzinhos, convivem, em idílica harmonia, num solo suficiente amplo e biologicamente acolhedor como a Terra – esta imagem é, portanto, bastante ingénua e simplista para se “plantar” ou/e "propagar" em qualquer consciência humana (desde a mais querida e digna funcionária fabril até ao mais nobre e arguto académico reputado). É então, precisamente, este fanatismo por realizar na prática esta imagem não suficientemente refletida de um modelo societal, que, poderá ter por efeito, uma sobrecarga de violência com paralelo aos fascismos que dominaram a Europa da primeira metade do século XX – motivados, p. ex., pela representação de uma sociedade pura, dominada por uma raça pura, etc.    
Concluo defendendo que o que a nossa civilização necessita, em primeiro lugar, é, sem dúvida, de uma “força política verde” ou uma “consciência massificada verde”, que nos ajude a lidar com os problemas da sustentabilidade e da escassez dos recursos planetários, e, por outro lado, em último lugar, de uma “força política verde” ou “consciência massificada verde” radicalizada de tal modo, que se converta numa nova religião, que, na sua nova cruzada, vá desembainhando sistematicamente a espada em nome de uma suposta e sagrada missão de salvar o mundo.       
David Santos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

O problema de Edmund Gettier, seus contra-exemplos.

 Tradicionalmente, define-se conhecimento como uma crença verdadeira justificada, definição tripartida, que diz respeito ao conhecimento proposicional, ou “de que”. Esta definição necessita, no entanto, de ser preenchida individualmente, ou seja, para que de facto haja conhecimento terá de haver a reunião das três condições supra referidas. Esta principal definição é focada, como sabemos, no Teeteto de Platão. 
 Gettier, põe em causa, num ensaio publicado em 1963, de modo conseguido esta tradicional definição tripartida, não com o objectivo de destruir esta definição, mas sim com o intuito de mostrar que a mesma é insuficiente. Gettier apresenta a sua contestação em relação à definição tradicional de modo sintético, dando origem, com seus exemplos contrários a uma problemática na definição tripartida. 
 Os contra-exemplos, que, como se indica no própria expressão, não reforçam a definição tripartida, ao invés pretendem demonstrar que a mesma é insuficiente, pretendem aperfeiçoar esta definição, dado que, como é referido, mesmo reunindo as três condições da definição tripartida, é possível que não haja conhecimento, ou que determinado sujeito não conheça determinado objecto. Apesar de as três condições serem aceites, estas carecem de algo que as complete. Enunciarei agora, dois exemplos formulados por Edmund Gettier:
 Primeiro exemplo: 
 Smith e Jones candidatam-se ao mesmo emprego. Smith tem uma crença que o leva a formular a seguinte proposição: “Jones é o homem que ganhará o emprego e Jones tem dez moedas no bolso”. Esta proposição implica uma outra inferida por Smith, “o homem que ganhará o emprego tem dez moedas no bolso”. No final, é próprio Smith que ganha o emprego, e que por fruto da coincidência tem dez moedas no bolso. 
 Este exemplo apresenta assim um falso conhecimento, pois embora Smith esteja certo acerca da proposição que se infere, não é conhecimento. 
 Segundo exemplo: 
Suponhamos que Smith tem fortes indícios a favor da proposição seguinte: “Jones tem um Ford”. Infere também que ou Jones tem um Ford ou Jones está em Barcelona. Agora imagine-se que Jones tinha um Ford alugado, ou que, por mero acaso, Smith acertou ao inferir que Jones está em Barcelona. Mais uma vez se chega à conclusão de que Smith formula/detém um falso conhecimento, dado que, tendo em conta a definição tripartida, tem uma crença justificada, no entanto baseada em algo que se crê que seja verdade.
 Logo se evidencia um carácter rebuscado, nestes exemplos formulados por Gettier. Não obstante, há outros exemplos, que podem ser considerados equivalentes, e talvez não menos rebuscados. Como é o enunciado por J. Dancy na obra "Epistemologia Contemporânea", o exemplo da "final de Wimbledon", formulado originalmente por Brian Garrett: «Um sujeito X assiste à final de Wimbledon na sua televisão, em que McEnroe vence Connors, o resultado é de dois a zero e match point para McEnroe, no terceiro set McEnroe ganha o ponto.» O sujeito X, que assiste ao jogo, crê que McEnroe é o campeão do ano presente, em Wimbledon. No entanto, terá havido uma falha na comunicação televisiva e a televisão começou a passar a gravação da competição do ano passado. Ao mesmo tempo que isto, e por puro acaso, McEnroe está prestes a ganhar o torneio, como havia feito o ano passado. 
 Outro exemplo, e este extremamente conhecido,  é o de Bertrand Russel, trata-se do exemplo do "relógio da igreja": Um sujeito X, ao olhar o relógio da igreja, verifica que são, suponhamos, 10 horas, o que o sujeito não sabe é que o mesmo relógio havia parado o dia anterior, exactamente às 10 horas. 
 Mesmo em ambos os últimos exemplos, apesar de rebuscados, se denota o intuito de demonstrar fraqueza na teoria tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada. Poderíamos preencher cada uma das três condições, com os exemplos enunciados, e, ainda assim, seria difícil admitir que sujeito X conhece factualmente e verdadeiramente dado fenómeno.  

* Cf. The cow in the field, cenário formulado pelo filósofo Martin Cohen.


Luís Mendes

sábado, 26 de maio de 2012

Método para desmontar ideologias com o “neoliberal” Walter Eucken

A melhor forma para principiarmos a desmontar qualquer que seja o discurso ideológico é tão simplesmente começar por colocar a tão simples seguinte questão: “Que interesses se encobrem por detrás desse discurso, dessa ideologia, dessa doutrina?”. Seguindo este raciocínio, e tendo em conta a conjuntura atual, devemos perguntar, sem quaisquer rodeios, sobre quem beneficia atualmente com a crise das dívidas soberanas que tem assolado, maioritariamente, o sul da Europa. Serão os cidadãos desses Estados endividados? Será o tecido empresarial desse mesmo Estado? Ou serão os investidores externos que investiram em títulos da dívida pública desses países? 
Porque de uma coisa não se tenha dúvida, ainda que a austeridade vise diminuir o rendimento disponível das famílias, logo, diminuir o seu poder de compra/consumo, não se pode recusar o facto da transferência permanente da riqueza/produto nacional dos “endividados” (neste caso, todos os portugueses!) para os credores (os tais investidores, que, no caso português, são maioritariamente exteriores ao nosso país). Assim, por detrás da retórica do “andámos estas décadas a viver acima das nossas possibilidades”, logo, “temos de recuar no nosso nível geral de consumo, através, precisamente, de políticas de austeridade“, está o mercado financeiro – com os seus especuladores – que vai beneficiando das usurárias taxas de juro (que multiplicam absurdamente o valor real dos empréstimos concedidos) e da “aquiescência pública” mantida através de instituições repressivas como o FMI e a própria Comissão Europeia. Estes são, por assim dizer, os factos inegáveis por detrás do manto ideológico, sustentado por determinados agentes políticos, que os tenta encobrir. E a mesma questão podemos lançar sobre as alterações à legislação laboral: “Que interesses irão beneficiar com estas alterações?” Independentemente da retórica do poder dominante – porque é tudo uma questão de poder! – sabemos perfeitamente que essas presentes alterações foram todas contra o trabalhador e em abono do patronato, o que o atesta, a maior facilidade nos despedimentos, a diminuição do valor das horas extraordinárias…, enfim, a redução nos custos do trabalho. Como sabemos, também, quais os interesses particulares que beneficiaram com a privatização de empresas de elevado interesse público, como a EDP, a REN… Já para não falar no BPN… 
E mesmo que admitamos que, de facto, vivemos acima das nossas possibilidades (o que as constantes e gritantes desigualdades de rendimentos não o corroboram tão levianamente!), no sentido em que consumimos mais do que o produzimos (e a nossa economia teve, de facto, pelo menos na última década, um índice crónico de “anemia" em termos de crescimento económico). Ainda assim, a retórica, a ideologia, o poder, que motivou estes “excessos” foram motivados por interesses tão particulares, como o sistema financeiro (com as agências financeiras e os bancos a darem total aval a esta procura – em forma de endividamento) e o próprio sistema politico, paredes meias com interesses privados, que pôs e dispôs desses mesmos benefícios de capital (facilitados pelo facto de estarmos inseridos na UE – que garantiu “credibilidade”) para, por meio das parcerias público-privadas, beneficiar interesses privados através da construção de autoestradas, pontes e etc., que coletivizavam os custos (ora de produção, ora de manutenção) e individualizavam os ganhos - como bem assegurou Carlos Moreno, juiz conselheiro do Tribunal de Contas, em comissão parlamentar de inquérito às PPP. 
Enfim, é hora de aprendermos com o neoliberal (não no sentido vulgar que hoje é dado a este conceito, mas no sentido primitivo das correntes reformuladoras do liberalismo clássico) Walter Eucken (1891-1950; fundador da “Escola de Friburgo” e do “Ordoliberalismo”) e sempre que a ideologia, com ela a política/o poder, vier interromper a ordem regular das nossas vidas, levantarmos simplesmente estas simples questões: “Que interesses particulares se ocultam por detrás destes discursos?” “Quem beneficia verdadeiramente, e no plano imediato, com este tipo de medidas?”

David Santos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Fiodor Dostoiévski, Noites Brancas (romance sentimental das memórias de um sonhador)

 Linha Geral: Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, um nome retumbante, o proeminente mestre russo da escrita. Noites Brancas (1848) é uma chave mestra do romantismo. De um mundo onírico a um mundo real, da tragicidade do destino e a decadência de um vivo. Desde estas trevas à luz de um orvalho, da noite à manhã, em dias. Onde começa e acaba o prazer de viver?

 O título em questão: Noites Brancas deve-se ao facto de que nas zonas do globo a partir de 60 graus de latitude Sul ou Norte durante a estação do Verão o dia ser constante mesmo durante o horário noturno, como se a noite tivesse sido banida durante 11 de Junho e 2 de Julho em Petersburgo antiga capital da Rússia entre 1713 – 1728 e 1732 – 1918. Além disso, devemos realçar que a noite é o momento do sonho, da toca, do refúgio… Em direto contraste com o dia que significa a luz, a razão e de uma forma mais simples a vida e dos prazeres que esta nos pode oferecer, como o sentir de emoções ou singelamente sentir não só isso mas o de sermos afetos pelas sensações. Sendo assim, é a partir da união que é feita pelo título que podemos sugerir a seguinte epigrafe: «O sonho comanda a vida», pois nós também nos refugiamos nas nossas mundanidades, mas neste caso o herói procura refugiar-se na relação de amizade que tem Nástenka, indo lentamente vivendo as sensações mundanas e abandonando o mundo dos sonhos.
 É nesse mundo do fantástico que o sonhador procura refugir-se da sociedade, da sua vulgaridade, mas que tragicamente se culpa por viver nesse mundo frio e solitário. Sendo esta antítese visível em dois momentos da obra: em que num primeiro momento de crítica social temos a descrição do estilo de vida da sociedade de Petersburgo, em que durante o período de Verão a classe mais abastada vai viver para as suas casas de campo; num segundo momento, damos com o episódio do desejo de saída do mundo onírico em que confessa a Nástenka – que, por seu turno, na sua história de vida demonstra partilhar com herói o veio do sentimentalismo e do sonhadorismo no entanto com um princípio mais concreto que é o de casar, e que é expresso quando esta abandona a avó para ir viver com o amado que a abandona por não poder assumir qualquer compromisso, mas que o torna a rever praticamente no penúltimo capítulo – que, devido ao seu misantropismo, nunca conheceu ninguém e de que chegava a comemorar os aniversários das suas sensações e das coisas que nunca chegaram a acontecer, mas que não passavam de sonhos que o aprisionavam da realidade, da qual recorda os momentos e lugares em que foi feliz.
 É neste convívio com esta mulher que o herói começa a redescobrir o prazer de viver, do carpe diem translúcido no último capítulo a “manhã” que se ergue sobre uma única questão e que é a seguinte: Um minuto de felicidade não valerá toda a vida de um homem?

 Fernando de Almeida