quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Bodes Expiatórios Contemporâneos


Sabemos através das dinâmicas de grupo que nos chegam da psicologia que criar um bode expiatório não é tarefa difícil. Mas, de que modo a actualidade gera estes bodes expiatórios? Falar de sacrifício como estrutura perene e eficaz de um ritual é reconhecer-lhe, na actualidade, estruturas que se metamorfosearam. Ainda que existam na nossa sociedade bodes expiatórios estes perderam com a complexificação social ao longo da história a sua função catártica e chegamos ao que René Girard denomina, ao longo das suas obras, de «crise sacrificial», isto é, quando as vítimas, que deveriam expulsar a violência da sociedade, deixam de possuir este papel e a violência se perpetua na sociedade. 
O sacrifício, que era em sociedades antigas a última palavra da violência e capaz de manter uma paz provisória na sociedade, possuía um modo próprio de existir, pois era devido à vítima sacrificial ser escolhida aleatoriamente, mas não irracionalmente, que ela não podia jamais devolver a violência à sociedade através do acto de vingança (Cf. Alfredo Teixeira). Em Édipo Rei, vemos exatamente este papel catártico do sacrifício onde a vítima se escolhe a si mesma e que é simultaneamente desconhecedora da sua tragédia situando-se Girard numa análise distante à que Freud realizou na sua psicanálise (Cf. Freud).
A crise sacrificial, que ocupa o lugar do sacrifício nas sociedades modernas, é a expressão de que se no início o sacrifício se apresentava como obrigação do sagrado ela aparece, por outro lado, como uma actividade criminal que engloba riscos de similar amplitude aos que estão envolvidos na obrigação sagrada. A constituição do poder jurídico condena o sacrifício como actividade criminal a menos que seja legitimado através da criação de outras instituições humanas substituidoras – por exemplo o direito penal das sociedades modernas – desta primeira instituição humana que era o sacrifício. O sacrifício toma como meio a utilização da violência, sobretudo física numa primeira instância, que ao longo da história se foi transformando cada vez mais em formas dissimuladas e pouco claras. Actualmente, a interposição de mediações técnicas entre as vítimas e os seus sacrificantes podem negar uma eventual violência e camuflar esse registo levando a um disfuncionamento do acto sacrificial. Contudo, negar a violência, quer num registo moderno ou primitivo, é afirmar o seu poder metamórfico pelo qual ela vai sempre encontrando uma e outra vítima sobre quem se exerce. A conduta sacrificial que nas sociedades antigas permitia expulsar a violência através do bode expiatório, como será a seguir demonstrado, é impossibilitada qua talis pelo sistema jurídico presente nas sociedades modernas que se apresenta como substituto racional daquela. O sacrifício já não é um instrumento de prevenção contra a violência pela sua impossibilidade de se apresentar como um ritual sacrificial, pelo menos de modo claro, sem mediações técnicas. A que se deve então esta impossibilidade? Em especial porque o sistema jurídico compete directamente contra o sistema sacrificial por aquele ser exactamente um outro modo sacrificial metamorfoseado (p.ex. o mito da pena, em Ricoeur). O sistema jurídico funciona na actualidade como um filtro, em grande medida, da violência física directa que fazia o sistema sacrificial do bode expiatório funcionar. O sistema jurídico-penal substitui o sistema sacrificial por este ser mais efectivo como legitimador da violência. O sistema jurídico-penal ao actuar de modo legítimo no plano social irá colocar o mecanismo sacrificial como ilegítimo. Existe uma desmistificação do sacrifício e este passa apenas a ser possível pelo sistema jurídico-penal – a justiça pelas próprias mãos, legitimada pelo mecanismo sacrificial quando a multidão tinha uma posição unânime, não é permitida neste novo sistema.
Resulta assim, desta crise sacrificial, a proliferação da violência em formas dissimuladas as quais invadem a sociedade ao serem legitimadas pelos diferentes modos de poder (poder político, económico, social, científico, tecnológico, etc.): «onde quer que a violência esteja presente a impureza sacrificial estará presente.» (René Girard).


  Márcio Meruje, O Mito: A Voz Desconhecida do Real?
Uma leitura de René Girard, Congresso Internacional , Universidade Aveiro - Maio 2011.

Sem comentários: