sexta-feira, 31 de maio de 2013

Duas dimensões diversas de legitimidade política

Discorre-se muito sobre a legitimidade governativa do actual governo. Pois bem, como hoje referiu o líder da bancada do PS Carlos Zorrinho, ao actual governo resta-lhe apenas uma "legitimidade burocrática" sendo que, tal deixa subentender,  que há uma dimensão da legitimidade política em que o governo de Pedro Passos Coelho já não participa ou se move para além das suas fronteiras, tanto simbólicas quanto reais. Julgando eu que essa outra legitimidade, e que não o podemos deixar de salientar, é de maior qualidade democrática do que a primeira (a burocrática, que respeita tão só aos processos institucionais, calendários eleitorais...), se depreende, como frisou Pacheco Pereira numa carta a Mário Soares (ver aqui), da cada vez mais grave "ruptura entre governantes e governados".
Assim, em seguimento a esta leitura das coisas (que distingue duas ordens diversas de legitimidade), em relação, p. ex., ao dramatismo da "suspensão democrática", apenas tenho duas leituras a fazer. Em relação ao primeiro significado de legitimidade (burocrática/institucional), é preciso não negligenciar que as instituições democráticas não foram suspensas. O parlamento continua a funcionar; a escolha dos representantes políticos por meio de eleições livres continua a vigorar e não há qualquer ameaça contra este processo; o tribunal constitucional continua a trabalhar com a autonomia desejada e as suas resoluções continuam a ser respeitadas  (com maior ou menor agrado) como espécie de imperativos incondicionais baseados nas elementares regras do jogo democrático parlamentar, etc., etc.
Já num segundo sentido, de qualidade democrática superior, há verdadeiramente uma "suspensão da democracia" sob a óptica de que o grande projecto ideológico do actual governo de  "implementar um programa de engenharia cultural, social e política, que faz dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias feitas" (outra vez seguindo Pacheco Pereira) não tem senão, se tanto, um apoio residual  das bases. Se calhar, até residual em relação aos seus próprios eleitores. Com isto, não nego qualquer projecto de transformação sócio-económica, cultural, etc., apenas creio que a legitimidade democrática de tal programa deve estar, só pode estar, fundamentada por meio da clara aquiescência das bases, pelo menos, das maiorias - e que, certamente, não é a maioria que concedeu legitimidade governativa ao programa apresentado pelo vigente primeiro-ministro à dois anos atrás. Este projecto de transformação social não pode ser, enfim, fruto de um programa e exercício tecnocratas (seja de direita ou de esquerda) mas uma transformação desejada ou trabalhada nas ou a partir das bases; deve acompanhar o próprio movimento da "sociedade civil" e confirmar-lhe o seu direito inalienável de participar politicamente nos assuntos da esfera pública. É isto que eu desejo para uma esquerda democrática e consciente, que a transformação social a ocorrer possa estar sempre justificada na própria vontade popular e não alienada desta e alinhada em interesses alheios à soberania.    

David Santos.

sábado, 25 de maio de 2013

A ruptura do novo testamento e a dialéctica entre fé e razão





Sabemos dos padres da igreja a importância da dialéctica credo ut intelligam/ intelligo ut credam, i. e, crer para poder compreender e compreender para crer,  como chave hermenêutica crucial para a compreensão da “essência do cristianismo”. E não obstante as contribuições dos doutores neste sentido, com Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária (na origem da primeira proposição) e Pedro Abelardo (na complementaridade da segunda), tentaremos esboçar uma outra hipótese, ou leitura, no sentido de também compreendermos, a montante, a justificação para o carácter terminante, na crença cristã, da inseparabilidade fundamental e dialogante entre fé e razão, fide et ratio. Para isso basearemos os nossos argumentos nas próprias sagradas escrituras, particularmente, nas primeiras páginas do Evangelho de São Mateus, e sem prejuízo da nossa ignorância nas lides teológicas.
Assim, antes de tudo mais, teremos de estar a par da ruptura radical entre o antigo e o novo testamento introduzida pelo nazareno. Não que este recuse dialogar com as leis e com os profetas do AT, bem pelo contrário, é precisamente dialogando com estes que Jesus vai revelando o que traz de infinitamente novo com a sua mensagem. Assim diz: “Ouviste o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu porém digo-vos: não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra.” E continua: “Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. E concluímos: “Na verdade, veio João [Baptista], que não come nem bebe, e dizem dele: ‘Está possesso!’ Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘ Aí está um glutão e um bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores!’ Mas a sabedoria foi justificada pelas suas próprias obras”.
A consciência do significado profundo da sua ruptura com a tradição judaica (com a outra “geração”, como Cristo lhe chega a referir-se) é tal que este não pode deixar de alertar os seus discípulos sobre a sua radicalidade, nomeadamente, com a eloquente síntese: “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada”. Interpretando nós a espada como símbolo dessa cisão fundamental que a sua mensagem acarreta face ao AT, à tradição.
Ora, onde é que esta consciência da cisão radical do NT (protagonizado pela figura de Jesus Cristo) por oposição ao AT (alicerçada nas Leis e nos Profetas) imbrica com o significado fundamental da relação capital entre fé e razão na mensagem cristã? Precisamente na nova inteligência com que o nazareno vem dotar a tradição (e, em certos momentos/diálogos, com a violência da fractura com esta) e na crença de que ele (Cristo) não é um falso profeta mas o próprio Messias que vem anunciar o reino do céus e redimir os nossos pecados. Quer dizer, Cristo, com a sua vinda, vem introduzir nos homens o fardo da própria exigência da no sentido do acreditar (ou não!) que essa nova inteligência (que funda uma outra ética) não é uma fraude destinada a corromper os homens do caminho para a salvação, mas a derradeira mensagem para a salvação. O cristianismo é uma religião de exigência (lembrando aqui, p. ex., um Kierkegaard), antes de submissão incondicional ao dogma e às autoridades seculares, porque, e outra vez Jesus: "Eu digo-vos que aqui está quem é maior que o templo".

David Santos.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago (terceira parte)


Aproveitando a deixa, o velho da venda preta relembra que na altura em que o «mal-branco» começou a alastrar, a multidão corria para os bancos na ambição de levantar todas as suas poupanças, seguindo-se uma vaga de assaltos, algumas das pessoas até ficavam nos subterrâneos a vigiar os cofres, saindo apenas para satisfazer as suas necessidades, para garantir que mais ninguém entrava chegavam a inventar palavras-passe e sinais de dedos. Descem até à rua onde residiam o médico e a mulher, mas a rua em nada se distinguia das outras já anteriormente descritas como sujas e com cegos vagueando sem destino; no entanto a mulher do médico idealizava que tudo estaria asseado, nunca pensando que a cegueira se estendesse ao entendimento. Sobem ao quinto patamar do prédio onde habitavam o médico e a esposa. Quando entram em casa pela primeira vez, depois de vários meses passados no manicómio, a mulher do médico repara que está tudo em ordem. Começa por fazer as tarefas domésticas e por tratar de acomodar todo o grupo, despiram-se todos para a mulher do médico recolher as roupas e as deixar na varanda colocando-as junto dos sapados, que já antes tinham sido recolhidos do patamar de entrada. Observando a cidade, repara em quão diferente está sem as luzes ligadas, os contornos dos edifícios são quase indistintos do alcatrão. Após este momento de reflexão, a mulher do médico volta para o interior para decidir o que irão fazer durante o período em que estiverem todos juntos; a mulher do médico salienta a importância de alguém a acompanhar nas saídas que tiver que fazer para, no caso de cegar, alguém a saiba trazer de volta a casa.
Sendo esta conversa realizada num juntar alumiado pela luz da candeia de azeite. Após a refeição, a mulher do médico explica ao rapazinho estrábico o que é uma candeia de azeite, agarrando-lhe na mão e passando-a no objeto, simultaneamente, acompanhado de uma descrição. Quando o rapazinho pergunta pela cor do objeto, a mulher do médico responde-lhe que é amarelo; foi quando o rapazinho, por um breve momento, se pôs com um ar pensativo o que levou a mulher do médico a suspeitar que o rapazito iria perguntar pela mãe, mas não, o que o rapazito acabou por perguntar foi por água. Ela lembrou-se que tinha alguma no depósito de autoclismo, mas fica ainda mais alegre quando no episódio em que está a dar a água ao rapazinho estrábico o marido ao perguntar-lhe pelas garrafas de água, ela se recorda que ainda tem dois garrafões de água pura, estando um deles a meio, foi uma alegria para todos beberem pela primeira vez, desde que foram internados, água pura.
De noite a chuva que caia violentamente, acordou a mulher do médico que tirou proveito da circunstância para pôr na rua qualquer objeto que pudesse armazenar água, aproveitou ainda para tomar banho e lavar a roupa, todo este ruído gerado pela chuva acaba por despertar as outras duas mulheres que depressa prestaram auxílio à mulher do médico. Após as três tomarem banho, foi a vez dos homens. Sendo o velho da venda preta o primeiro a lavar-se dentro da banheira, a meio do banho, sente que alguém lhe está a passar as costas, pensou que fosse a mulher do médico, ou a do primeiro cego, ou a rapariga dos óculos escuros, enquanto isso as mãos acabaram a sua obra, a razão pareci-lhe dizer que fora a mulher do médico pois é a única que ainda possui os cinco sentidos e que tem cuidado de todos aqueles que estão em casa, mas o palpite é desfalcado ao entrar na sala de estar quando a mulher do médico afirmou que foi uma pena ele não ter lavado as costas.
Nessa manhã, saem a mulher do médico, a mulher do primeiro cego e o primeiro cego, para procurar comida e para ver se a casa destes já tinha sido ocupada. Pelo caminho, a mulher do médico procura por lojas onde possa reabastecer. Vão seguindo para a casa do primeiro cego, chegam ao prédio onde este mora, a mulher do médico pergunta ao primeiro cego qual o andar em que moram, este responde-lhe que vive no terceiro. Ao baterem na porta aparece um homem que lhes pergunta quem e quantos são, ao que o primeiro cego diz que é o proprietário do imóvel e que vem acompanhado da mulher e de uma amiga do casal; este misterioso homem deixa-os entrar e revela-lhes que é escritor. A mulher do primeiro cego pergunta ao escritor qual é o seu nome, este diz que isso já não importa e que não era o único que estava a viver em casa, haviam ainda a mulher e as duas filhas que tinham ido à procura de comida. Ele simplesmente estava ocupar a casa porque já outros cegos se tinham apossado da sua, e é isto que se passa, regra geral, na cidade. O que ele propõe ao primeiro cego é que deixa as coisas consoante estão, e quando encontrar a sua casa vazia mudar-se-á imediatamente para lá e da mesma forma deverá proceder o primeiro cego. Entre os diversos assuntos que foram levantados, um deles foi o tempo de quarentena, o fato de a mulher do médico nunca ter perdido a visão, e de o grupo da mulher do médico ter saído do sanatório à três dias; o escritor diz-lhes que consegue ainda escrever, entretanto leva-os ao local onde costuma escrever, aí encontrava-se uma mesa com algumas folhas escritas, outras em branco, e no meio uma folha quase preenchida, um candeeiro e duas esferográficas.
Terminada a visita, os três voltam para casa do médico carregados com alimentos para os próximos três dias. À noite a mulher do médico lê um livro que retirou da biblioteca.
Passados dois dias o médico sente curiosidade em saber como andará o seu consultório, a sua mulher disse-lhe que não se importava de lá ir, a rapariga dos óculos escuros disse que gostaria de aproveitar a viagem para saber como estava o seu apartamento. Os três elementos entram no consultório do médico, os arquivos apresentavam sinais de terem sido revolvidos quanto ao restante estava tudo em ordem. Seguem para a casa da rapariga dos óculos escuros. À entrada do prédio da rapariga dos óculos escuros estava o cadáver da vizinha do primeiro andar com umas chaves na mão, a mulher do médico recolheu-as e entregou-as à rapariga dos óculos escuros; agarram no corpo da velha para o enterrar no quintal do prédio. Depois de enterrada a velha do primeiro andar; a rapariga dos óculos escuros pensa em deixar um sinal de que está viva, para o caso dos pais voltarem para casa, a mulher do médico sobe ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas escadas de salvação abrindo a porta com as chaves que estavam na mão da venha, vai buscar uma tesoura e um cordel, corta uma madeixa de cabelo da rapariga dos óculos escuros para a pendurar no puxador da porta. Voltam outra vez para casa do médico onde, novamente, houve uma secção de leitura e audição, em que no final se estabelece uma conversa entre a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta, sobre as suas esperanças de voltarem a ver, no meio da conversa os dois acabam por declarar que gostam um do outro, descobrindo- -se assim, quem lavou as costas ao velho naquela manhã chuvosa.
No dia seguinte, a mulher e o médico vão ao subterrâneo do supermercado para se abastecerem com comida. Chegados ao supermercado, a primeira coisa que a mulher do médico nota é que não entra nem sai ninguém do supermercado, ao entrar ela apercebe-se do cheiro a putrefação e que se intensifica à medida que avançam em direção à cave, na altura em que a mulher do médico seu interior da cave o cheiro é ainda mais nauseabundo, quando chega ao fundo das escadas repara nos cadáveres que ali estavam amontoados; o marido ouve os vómitos, os arrancos e a tosse, acompanhados pelo uivo do cão das lágrimas, e que o move a descer as escadas à procura da mulher. Ele guia-a até à saída da cave e ela conta-lhe o que viu, e que se sente culpada por ter dado a entender aos cegos que ainda havia comida nalguma zona do supermercado, no momento em que saiu do estabelecimento com os sacos da comida.
A mulher mal se podia arrastar quando saíram do supermercado, não era de estranhar pois ainda continuavam com os sacos vazios, do outro lado da rua estava uma igreja onde ela pensou ser um bom sítio para ela descansar, o marido vai amparando-a, com o interior da igreja a abarrotar era difícil encontrar local onde a mulher pudesse repousar, o cão das lágrimas com os seus rosnidos consegue arranjar espaço onde a mulher pudesse deitar-se, mas o marido ajuda-a para que se sente, aos poucos ela lá consegue melhorar. Começa a olhar para as imagens e esculturas dos santos, mas algo lhe prende a atenção, os santos estavam vendados com vendas brancas e as imagens com os olhos pintados de branco; quando ela disse que os santos estavam vendados com vendas brancas a uma cega, estando os outros a ouvir, foi o pânico geral, toda a gente saiu. Os únicos que ficaram foi o cão das lágrimas que começou a farejar à cata de comida, a mulher e o médico que conseguiram encher os sacos até a meio.
Chegados a casa fazem o relato aos restantes companheiros, a mulher do médico sobrelevou que estava cada vez mais difícil de encontrar comida que talvez devessem ir viver para o campo, onde seria mais fácil obter alimento. À noite, como se tinha tornado usual, seguiu-se uma secção de leitura. Durante a secção o primeiro cego adormece, nos seus pensamentos a ideia de abandonar a cidade, e com isso a sua casa, para ir viver para o campo parecia-lhe um erro. Algo de perplexo se passa, começa a ver tudo negro, pensa que terá passado de um estado de cegueira para outro, este pavor da treva fá-lo gemer; o que chama a atenção da esposa, o que ele lhe responde que está cego, ela para o consolar dá-lhe um abraço e diz-lhe para voltar a dormir. O que o deixa irritado, começa a abrir os olhos e descobre que vê e grita a sua descoberta, movido pelo furor começa a abraçar todos os que se encontravam na sala, o médico começa a pensar que talvez este «mal-branco» esteja próximo do fim; este acontecimento tornou-se tema de conversa durante as horas que se seguiram. Já noite alta, a segunda pessoa a recuperar a vista é a rapariga dos óculos escuros, observou a quem tinha feito promessas de uma vida a dois durante o seu estado de cegueira, e dá-lhe um abraço como se o acordo ainda estivesse de pé; o terceiro a recuperar a vista, já durante as primeiras horas da manhã, é o médico. Os restantes era apenas uma questão de tempo até recuperarem a visão. Na conversa que se estabelece entre a mulher do médico e o marido a respeito do velho da venda preta, o médico termina com esta observação: que talvez não tivessem ficado cegos e que naquele preciso momento eram cegos que vêem. Depois disto, o médico foi à janela assistir as pessoas que gritavam e cantavam por terem recuperado a visão.
Finalizando este nosso resumo. Fazendo uma interligação entre alguns dos espaços da obra (sanatório, supermercado e igreja); não será o supermercado a catedral dos nossos dias, onde o fideísmo pelo consumo chega à demência? Por acaso, não será o episódio de vendar e pintar as imagens dos santos uma expressão de uma sociedade desprovida de valores morais? E não será este episódio também uma forma de moldar os deuses e santos à nossa imagem? Avançando, também não será simbólico quando em tempos de dificuldade as pessoas recorrerem à igreja, como os cegos que estavam deitados no seu interior? Não seremos nós cegos que não querem enxergar a sua condição de ser intrínseco à natureza, mesmo estando as nossas necessidades básicas a alertar-nos para isso?
  Fernando de Almeida.