Discorre-se muito sobre a legitimidade governativa do actual governo. Pois bem, como hoje referiu o líder da bancada do PS Carlos Zorrinho, ao actual governo resta-lhe apenas uma "legitimidade burocrática" sendo que, tal deixa subentender, que há uma dimensão da legitimidade política em que o governo de Pedro Passos Coelho já não participa ou se move para além das suas fronteiras, tanto simbólicas quanto reais. Julgando eu que essa outra legitimidade, e que não o podemos deixar de salientar, é de maior qualidade democrática do que a primeira (a burocrática, que respeita tão só aos processos institucionais, calendários eleitorais...), se depreende, como frisou Pacheco Pereira numa carta a Mário Soares (ver aqui), da cada vez mais grave "ruptura entre governantes e governados".
Assim, em seguimento a esta leitura das coisas (que distingue duas ordens diversas de legitimidade), em relação, p. ex., ao dramatismo da "suspensão democrática", apenas tenho duas leituras a fazer. Em relação ao primeiro significado de legitimidade (burocrática/institucional), é preciso não negligenciar que as instituições democráticas não foram suspensas. O parlamento continua a funcionar; a escolha dos representantes políticos por meio de eleições livres continua a vigorar e não há qualquer ameaça contra este processo; o tribunal constitucional continua a trabalhar com a autonomia desejada e as suas resoluções continuam a ser respeitadas (com maior ou menor agrado) como espécie de imperativos incondicionais baseados nas elementares regras do jogo democrático parlamentar, etc., etc.
Já num segundo sentido, de qualidade democrática superior, há verdadeiramente uma "suspensão da democracia" sob a óptica de que o grande projecto ideológico do actual governo de "implementar um programa de engenharia cultural, social e política, que
faz dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias feitas" (outra vez seguindo Pacheco Pereira) não tem senão, se tanto, um apoio residual das bases. Se calhar, até residual em relação aos seus próprios eleitores. Com isto, não nego qualquer projecto de transformação sócio-económica, cultural, etc., apenas creio que a legitimidade democrática de tal programa deve estar, só pode estar, fundamentada por meio da clara aquiescência das bases, pelo menos, das maiorias - e que, certamente, não é a maioria que concedeu legitimidade governativa ao programa apresentado pelo vigente primeiro-ministro à dois anos atrás. Este projecto de transformação social não pode ser, enfim, fruto de um programa e exercício tecnocratas (seja de direita ou de esquerda) mas uma transformação desejada ou trabalhada nas ou a partir das bases; deve acompanhar o próprio movimento da "sociedade civil" e confirmar-lhe o seu direito inalienável de participar politicamente nos assuntos da esfera pública. É isto que eu desejo para uma esquerda democrática e consciente, que a transformação social a ocorrer possa estar sempre justificada na própria vontade popular e não alienada desta e alinhada em interesses alheios à soberania.
David Santos.
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