Aproveitando a deixa, o
velho da venda preta relembra que na altura em que o «mal-branco» começou a
alastrar, a multidão corria para os bancos na ambição de levantar todas as suas
poupanças, seguindo-se uma vaga de assaltos, algumas das pessoas até ficavam nos
subterrâneos a vigiar os cofres, saindo apenas para satisfazer as suas
necessidades, para garantir que mais ninguém entrava chegavam a inventar
palavras-passe e sinais de dedos. Descem até à rua onde residiam o médico e a
mulher, mas a rua em nada se distinguia das outras já anteriormente descritas
como sujas e com cegos vagueando sem destino; no entanto a mulher do médico
idealizava que tudo estaria asseado, nunca pensando que a cegueira se
estendesse ao entendimento. Sobem ao quinto patamar do prédio onde habitavam o
médico e a esposa. Quando entram em casa pela primeira vez, depois de vários
meses passados no manicómio, a mulher do médico repara que está tudo em ordem.
Começa por fazer as tarefas domésticas e por tratar de acomodar todo o grupo,
despiram-se todos para a mulher do médico recolher as roupas e as deixar na
varanda colocando-as junto dos sapados, que já antes tinham sido recolhidos do
patamar de entrada. Observando a cidade, repara em quão diferente está sem as
luzes ligadas, os contornos dos edifícios são quase indistintos do alcatrão.
Após este momento de reflexão, a mulher do médico volta para o interior para
decidir o que irão fazer durante o período em que estiverem todos juntos; a
mulher do médico salienta a importância de alguém a acompanhar nas saídas que
tiver que fazer para, no caso de cegar, alguém a saiba trazer de volta a casa.
Sendo esta conversa
realizada num juntar alumiado pela luz da candeia de azeite. Após a refeição, a
mulher do médico explica ao rapazinho estrábico o que é uma candeia de azeite,
agarrando-lhe na mão e passando-a no objeto, simultaneamente, acompanhado de
uma descrição. Quando o rapazinho pergunta pela cor do objeto, a mulher do
médico responde-lhe que é amarelo; foi quando o rapazinho, por um breve
momento, se pôs com um ar pensativo o que levou a mulher do médico a suspeitar
que o rapazito iria perguntar pela mãe, mas não, o que o rapazito acabou por
perguntar foi por água. Ela lembrou-se que tinha alguma no depósito de
autoclismo, mas fica ainda mais alegre quando no episódio em que está a dar a
água ao rapazinho estrábico o marido ao perguntar-lhe pelas garrafas de água,
ela se recorda que ainda tem dois garrafões de água pura, estando um deles a
meio, foi uma alegria para todos beberem pela primeira vez, desde que foram
internados, água pura.
De noite a chuva que
caia violentamente, acordou a mulher do médico que tirou proveito da
circunstância para pôr na rua qualquer objeto que pudesse armazenar água, aproveitou
ainda para tomar banho e lavar a roupa, todo este ruído gerado pela chuva acaba
por despertar as outras duas mulheres que depressa prestaram auxílio à mulher
do médico. Após as três tomarem banho, foi a vez dos homens. Sendo o velho da
venda preta o primeiro a lavar-se dentro da banheira, a meio do banho, sente
que alguém lhe está a passar as costas, pensou que fosse a mulher do médico, ou
a do primeiro cego, ou a rapariga dos óculos escuros, enquanto isso as mãos
acabaram a sua obra, a razão pareci-lhe dizer que fora a mulher do médico pois
é a única que ainda possui os cinco sentidos e que tem cuidado de todos aqueles
que estão em casa, mas o palpite é desfalcado ao entrar na sala de estar quando
a mulher do médico afirmou que foi uma pena ele não ter lavado as costas.
Nessa manhã, saem a
mulher do médico, a mulher do primeiro cego e o primeiro cego, para procurar
comida e para ver se a casa destes já tinha sido ocupada. Pelo caminho, a
mulher do médico procura por lojas onde possa reabastecer. Vão seguindo para a
casa do primeiro cego, chegam ao prédio onde este mora, a mulher do médico
pergunta ao primeiro cego qual o andar em que moram, este responde-lhe que vive
no terceiro. Ao baterem na porta aparece um homem que lhes pergunta quem e
quantos são, ao que o primeiro cego diz que é o proprietário do imóvel e que
vem acompanhado da mulher e de uma amiga do casal; este misterioso homem
deixa-os entrar e revela-lhes que é escritor. A mulher do primeiro cego
pergunta ao escritor qual é o seu nome, este diz que isso já não importa e que
não era o único que estava a viver em casa, haviam ainda a mulher e as duas
filhas que tinham ido à procura de comida. Ele simplesmente estava ocupar a
casa porque já outros cegos se tinham apossado da sua, e é isto que se passa,
regra geral, na cidade. O que ele propõe ao primeiro cego é que deixa as coisas
consoante estão, e quando encontrar a sua casa vazia mudar-se-á imediatamente
para lá e da mesma forma deverá proceder o primeiro cego. Entre os diversos
assuntos que foram levantados, um deles foi o tempo de quarentena, o fato de a
mulher do médico nunca ter perdido a visão, e de o grupo da mulher do médico
ter saído do sanatório à três dias; o escritor diz-lhes que consegue ainda escrever,
entretanto leva-os ao local onde costuma escrever, aí encontrava-se uma mesa
com algumas folhas escritas, outras em branco, e no meio uma folha quase
preenchida, um candeeiro e duas esferográficas.
Terminada a visita, os três
voltam para casa do médico carregados com alimentos para os próximos três dias.
À noite a mulher do médico lê um livro que retirou da biblioteca.
Passados dois dias o
médico sente curiosidade em saber como andará o seu consultório, a sua mulher
disse-lhe que não se importava de lá ir, a rapariga dos óculos escuros disse
que gostaria de aproveitar a viagem para saber como estava o seu apartamento.
Os três elementos entram no consultório do médico, os arquivos apresentavam
sinais de terem sido revolvidos quanto ao restante estava tudo em ordem. Seguem
para a casa da rapariga dos óculos escuros. À entrada do prédio da rapariga dos
óculos escuros estava o cadáver da vizinha do primeiro andar com umas chaves na
mão, a mulher do médico recolheu-as e entregou-as à rapariga dos óculos escuros;
agarram no corpo da velha para o enterrar no quintal do prédio. Depois de
enterrada a velha do primeiro andar; a rapariga dos óculos escuros pensa em
deixar um sinal de que está viva, para o caso dos pais voltarem para casa, a
mulher do médico sobe ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas
escadas de salvação abrindo a porta com as chaves que estavam na mão da venha,
vai buscar uma tesoura e um cordel, corta uma madeixa de cabelo da rapariga dos
óculos escuros para a pendurar no puxador da porta. Voltam outra vez para casa
do médico onde, novamente, houve uma secção de leitura e audição, em que no
final se estabelece uma conversa entre a rapariga dos óculos escuros e o velho
da venda preta, sobre as suas esperanças de voltarem a ver, no meio da conversa
os dois acabam por declarar que gostam um do outro, descobrindo- -se assim,
quem lavou as costas ao velho naquela manhã chuvosa.
No dia seguinte, a
mulher e o médico vão ao subterrâneo do supermercado para se abastecerem com
comida. Chegados ao supermercado, a primeira coisa que a mulher do médico nota
é que não entra nem sai ninguém do supermercado, ao entrar ela apercebe-se do
cheiro a putrefação e que se intensifica à medida que avançam em direção à
cave, na altura em que a mulher do médico seu interior da cave o cheiro é ainda
mais nauseabundo, quando chega ao fundo das escadas repara nos cadáveres que
ali estavam amontoados; o marido ouve os vómitos, os arrancos e a tosse,
acompanhados pelo uivo do cão das lágrimas, e que o move a descer as escadas à
procura da mulher. Ele guia-a até à saída da cave e ela conta-lhe o que viu, e
que se sente culpada por ter dado a entender aos cegos que ainda havia comida
nalguma zona do supermercado, no momento em que saiu do estabelecimento com os
sacos da comida.
A mulher mal se podia
arrastar quando saíram do supermercado, não era de estranhar pois ainda
continuavam com os sacos vazios, do outro lado da rua estava uma igreja onde
ela pensou ser um bom sítio para ela descansar, o marido vai amparando-a, com o
interior da igreja a abarrotar era difícil encontrar local onde a mulher
pudesse repousar, o cão das lágrimas com os seus rosnidos consegue arranjar
espaço onde a mulher pudesse deitar-se, mas o marido ajuda-a para que se sente,
aos poucos ela lá consegue melhorar. Começa a olhar para as imagens e
esculturas dos santos, mas algo lhe prende a atenção, os santos estavam vendados
com vendas brancas e as imagens com os olhos pintados de branco; quando ela
disse que os santos estavam vendados com vendas brancas a uma cega, estando os
outros a ouvir, foi o pânico geral, toda a gente saiu. Os únicos que ficaram
foi o cão das lágrimas que começou a farejar à cata de comida, a mulher e o médico
que conseguiram encher os sacos até a meio.
Chegados a casa fazem o
relato aos restantes companheiros, a mulher do médico sobrelevou que estava
cada vez mais difícil de encontrar comida que talvez devessem ir viver para o
campo, onde seria mais fácil obter alimento. À noite, como se tinha tornado
usual, seguiu-se uma secção de leitura. Durante a secção o primeiro cego
adormece, nos seus pensamentos a ideia de abandonar a cidade, e com isso a sua
casa, para ir viver para o campo parecia-lhe um erro. Algo de perplexo se passa,
começa a ver tudo negro, pensa que terá passado de um estado de cegueira para
outro, este pavor da treva fá-lo gemer; o que chama a atenção da esposa, o que
ele lhe responde que está cego, ela para o consolar dá-lhe um abraço e diz-lhe
para voltar a dormir. O que o deixa irritado, começa a abrir os olhos e
descobre que vê e grita a sua descoberta, movido pelo furor começa a abraçar
todos os que se encontravam na sala, o médico começa a pensar que talvez este
«mal-branco» esteja próximo do fim; este acontecimento tornou-se tema de
conversa durante as horas que se seguiram. Já noite alta, a segunda pessoa a
recuperar a vista é a rapariga dos óculos escuros, observou a quem tinha feito
promessas de uma vida a dois durante o seu estado de cegueira, e dá-lhe um
abraço como se o acordo ainda estivesse de pé; o terceiro a recuperar a vista,
já durante as primeiras horas da manhã, é o médico. Os restantes era apenas uma
questão de tempo até recuperarem a visão. Na conversa que se estabelece entre a
mulher do médico e o marido a respeito do velho da venda preta, o médico
termina com esta observação: que talvez não tivessem ficado cegos e que naquele
preciso momento eram cegos que vêem. Depois disto, o médico foi à janela
assistir as pessoas que gritavam e cantavam por terem recuperado a visão.
Finalizando este nosso
resumo. Fazendo uma interligação entre alguns dos espaços da obra (sanatório,
supermercado e igreja); não será o supermercado a catedral dos nossos dias,
onde o fideísmo pelo consumo chega à demência? Por acaso, não será o episódio
de vendar e pintar as imagens dos santos uma expressão de uma sociedade
desprovida de valores morais? E não será este episódio também uma forma de
moldar os deuses e santos à nossa imagem? Avançando, também não será simbólico
quando em tempos de dificuldade as pessoas recorrerem à igreja, como os cegos
que estavam deitados no seu interior? Não seremos nós cegos que não querem
enxergar a sua condição de ser intrínseco à natureza, mesmo estando as nossas
necessidades básicas a alertar-nos para isso?
Fernando de Almeida.
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