terça-feira, 29 de maio de 2012

O problema de Edmund Gettier, seus contra-exemplos.

 Tradicionalmente, define-se conhecimento como uma crença verdadeira justificada, definição tripartida, que diz respeito ao conhecimento proposicional, ou “de que”. Esta definição necessita, no entanto, de ser preenchida individualmente, ou seja, para que de facto haja conhecimento terá de haver a reunião das três condições supra referidas. Esta principal definição é focada, como sabemos, no Teeteto de Platão. 
 Gettier, põe em causa, num ensaio publicado em 1963, de modo conseguido esta tradicional definição tripartida, não com o objectivo de destruir esta definição, mas sim com o intuito de mostrar que a mesma é insuficiente. Gettier apresenta a sua contestação em relação à definição tradicional de modo sintético, dando origem, com seus exemplos contrários a uma problemática na definição tripartida. 
 Os contra-exemplos, que, como se indica no própria expressão, não reforçam a definição tripartida, ao invés pretendem demonstrar que a mesma é insuficiente, pretendem aperfeiçoar esta definição, dado que, como é referido, mesmo reunindo as três condições da definição tripartida, é possível que não haja conhecimento, ou que determinado sujeito não conheça determinado objecto. Apesar de as três condições serem aceites, estas carecem de algo que as complete. Enunciarei agora, dois exemplos formulados por Edmund Gettier:
 Primeiro exemplo: 
 Smith e Jones candidatam-se ao mesmo emprego. Smith tem uma crença que o leva a formular a seguinte proposição: “Jones é o homem que ganhará o emprego e Jones tem dez moedas no bolso”. Esta proposição implica uma outra inferida por Smith, “o homem que ganhará o emprego tem dez moedas no bolso”. No final, é próprio Smith que ganha o emprego, e que por fruto da coincidência tem dez moedas no bolso. 
 Este exemplo apresenta assim um falso conhecimento, pois embora Smith esteja certo acerca da proposição que se infere, não é conhecimento. 
 Segundo exemplo: 
Suponhamos que Smith tem fortes indícios a favor da proposição seguinte: “Jones tem um Ford”. Infere também que ou Jones tem um Ford ou Jones está em Barcelona. Agora imagine-se que Jones tinha um Ford alugado, ou que, por mero acaso, Smith acertou ao inferir que Jones está em Barcelona. Mais uma vez se chega à conclusão de que Smith formula/detém um falso conhecimento, dado que, tendo em conta a definição tripartida, tem uma crença justificada, no entanto baseada em algo que se crê que seja verdade.
 Logo se evidencia um carácter rebuscado, nestes exemplos formulados por Gettier. Não obstante, há outros exemplos, que podem ser considerados equivalentes, e talvez não menos rebuscados. Como é o enunciado por J. Dancy na obra "Epistemologia Contemporânea", o exemplo da "final de Wimbledon", formulado originalmente por Brian Garrett: «Um sujeito X assiste à final de Wimbledon na sua televisão, em que McEnroe vence Connors, o resultado é de dois a zero e match point para McEnroe, no terceiro set McEnroe ganha o ponto.» O sujeito X, que assiste ao jogo, crê que McEnroe é o campeão do ano presente, em Wimbledon. No entanto, terá havido uma falha na comunicação televisiva e a televisão começou a passar a gravação da competição do ano passado. Ao mesmo tempo que isto, e por puro acaso, McEnroe está prestes a ganhar o torneio, como havia feito o ano passado. 
 Outro exemplo, e este extremamente conhecido,  é o de Bertrand Russel, trata-se do exemplo do "relógio da igreja": Um sujeito X, ao olhar o relógio da igreja, verifica que são, suponhamos, 10 horas, o que o sujeito não sabe é que o mesmo relógio havia parado o dia anterior, exactamente às 10 horas. 
 Mesmo em ambos os últimos exemplos, apesar de rebuscados, se denota o intuito de demonstrar fraqueza na teoria tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada. Poderíamos preencher cada uma das três condições, com os exemplos enunciados, e, ainda assim, seria difícil admitir que sujeito X conhece factualmente e verdadeiramente dado fenómeno.  

* Cf. The cow in the field, cenário formulado pelo filósofo Martin Cohen.


Luís Mendes

sábado, 26 de maio de 2012

Método para desmontar ideologias com o “neoliberal” Walter Eucken

A melhor forma para principiarmos a desmontar qualquer que seja o discurso ideológico é tão simplesmente começar por colocar a tão simples seguinte questão: “Que interesses se encobrem por detrás desse discurso, dessa ideologia, dessa doutrina?”. Seguindo este raciocínio, e tendo em conta a conjuntura atual, devemos perguntar, sem quaisquer rodeios, sobre quem beneficia atualmente com a crise das dívidas soberanas que tem assolado, maioritariamente, o sul da Europa. Serão os cidadãos desses Estados endividados? Será o tecido empresarial desse mesmo Estado? Ou serão os investidores externos que investiram em títulos da dívida pública desses países? 
Porque de uma coisa não se tenha dúvida, ainda que a austeridade vise diminuir o rendimento disponível das famílias, logo, diminuir o seu poder de compra/consumo, não se pode recusar o facto da transferência permanente da riqueza/produto nacional dos “endividados” (neste caso, todos os portugueses!) para os credores (os tais investidores, que, no caso português, são maioritariamente exteriores ao nosso país). Assim, por detrás da retórica do “andámos estas décadas a viver acima das nossas possibilidades”, logo, “temos de recuar no nosso nível geral de consumo, através, precisamente, de políticas de austeridade“, está o mercado financeiro – com os seus especuladores – que vai beneficiando das usurárias taxas de juro (que multiplicam absurdamente o valor real dos empréstimos concedidos) e da “aquiescência pública” mantida através de instituições repressivas como o FMI e a própria Comissão Europeia. Estes são, por assim dizer, os factos inegáveis por detrás do manto ideológico, sustentado por determinados agentes políticos, que os tenta encobrir. E a mesma questão podemos lançar sobre as alterações à legislação laboral: “Que interesses irão beneficiar com estas alterações?” Independentemente da retórica do poder dominante – porque é tudo uma questão de poder! – sabemos perfeitamente que essas presentes alterações foram todas contra o trabalhador e em abono do patronato, o que o atesta, a maior facilidade nos despedimentos, a diminuição do valor das horas extraordinárias…, enfim, a redução nos custos do trabalho. Como sabemos, também, quais os interesses particulares que beneficiaram com a privatização de empresas de elevado interesse público, como a EDP, a REN… Já para não falar no BPN… 
E mesmo que admitamos que, de facto, vivemos acima das nossas possibilidades (o que as constantes e gritantes desigualdades de rendimentos não o corroboram tão levianamente!), no sentido em que consumimos mais do que o produzimos (e a nossa economia teve, de facto, pelo menos na última década, um índice crónico de “anemia" em termos de crescimento económico). Ainda assim, a retórica, a ideologia, o poder, que motivou estes “excessos” foram motivados por interesses tão particulares, como o sistema financeiro (com as agências financeiras e os bancos a darem total aval a esta procura – em forma de endividamento) e o próprio sistema politico, paredes meias com interesses privados, que pôs e dispôs desses mesmos benefícios de capital (facilitados pelo facto de estarmos inseridos na UE – que garantiu “credibilidade”) para, por meio das parcerias público-privadas, beneficiar interesses privados através da construção de autoestradas, pontes e etc., que coletivizavam os custos (ora de produção, ora de manutenção) e individualizavam os ganhos - como bem assegurou Carlos Moreno, juiz conselheiro do Tribunal de Contas, em comissão parlamentar de inquérito às PPP. 
Enfim, é hora de aprendermos com o neoliberal (não no sentido vulgar que hoje é dado a este conceito, mas no sentido primitivo das correntes reformuladoras do liberalismo clássico) Walter Eucken (1891-1950; fundador da “Escola de Friburgo” e do “Ordoliberalismo”) e sempre que a ideologia, com ela a política/o poder, vier interromper a ordem regular das nossas vidas, levantarmos simplesmente estas simples questões: “Que interesses particulares se ocultam por detrás destes discursos?” “Quem beneficia verdadeiramente, e no plano imediato, com este tipo de medidas?”

David Santos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Fiodor Dostoiévski, Noites Brancas (romance sentimental das memórias de um sonhador)

 Linha Geral: Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, um nome retumbante, o proeminente mestre russo da escrita. Noites Brancas (1848) é uma chave mestra do romantismo. De um mundo onírico a um mundo real, da tragicidade do destino e a decadência de um vivo. Desde estas trevas à luz de um orvalho, da noite à manhã, em dias. Onde começa e acaba o prazer de viver?

 O título em questão: Noites Brancas deve-se ao facto de que nas zonas do globo a partir de 60 graus de latitude Sul ou Norte durante a estação do Verão o dia ser constante mesmo durante o horário noturno, como se a noite tivesse sido banida durante 11 de Junho e 2 de Julho em Petersburgo antiga capital da Rússia entre 1713 – 1728 e 1732 – 1918. Além disso, devemos realçar que a noite é o momento do sonho, da toca, do refúgio… Em direto contraste com o dia que significa a luz, a razão e de uma forma mais simples a vida e dos prazeres que esta nos pode oferecer, como o sentir de emoções ou singelamente sentir não só isso mas o de sermos afetos pelas sensações. Sendo assim, é a partir da união que é feita pelo título que podemos sugerir a seguinte epigrafe: «O sonho comanda a vida», pois nós também nos refugiamos nas nossas mundanidades, mas neste caso o herói procura refugiar-se na relação de amizade que tem Nástenka, indo lentamente vivendo as sensações mundanas e abandonando o mundo dos sonhos.
 É nesse mundo do fantástico que o sonhador procura refugir-se da sociedade, da sua vulgaridade, mas que tragicamente se culpa por viver nesse mundo frio e solitário. Sendo esta antítese visível em dois momentos da obra: em que num primeiro momento de crítica social temos a descrição do estilo de vida da sociedade de Petersburgo, em que durante o período de Verão a classe mais abastada vai viver para as suas casas de campo; num segundo momento, damos com o episódio do desejo de saída do mundo onírico em que confessa a Nástenka – que, por seu turno, na sua história de vida demonstra partilhar com herói o veio do sentimentalismo e do sonhadorismo no entanto com um princípio mais concreto que é o de casar, e que é expresso quando esta abandona a avó para ir viver com o amado que a abandona por não poder assumir qualquer compromisso, mas que o torna a rever praticamente no penúltimo capítulo – que, devido ao seu misantropismo, nunca conheceu ninguém e de que chegava a comemorar os aniversários das suas sensações e das coisas que nunca chegaram a acontecer, mas que não passavam de sonhos que o aprisionavam da realidade, da qual recorda os momentos e lugares em que foi feliz.
 É neste convívio com esta mulher que o herói começa a redescobrir o prazer de viver, do carpe diem translúcido no último capítulo a “manhã” que se ergue sobre uma única questão e que é a seguinte: Um minuto de felicidade não valerá toda a vida de um homem?

 Fernando de Almeida

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Why the fight against racism failed?

Robert Bernasconi

24 de Maio  17h
Cinubiteca
Faculdade de Artes e Letras
Pólo I    UBI  - Universidade da Beira Interior

Robert Bernasconi é Professor na Penn State University e é o editor do "Cambridge Companion to Levinas" e do "Blackwell Companion to Race". É um dos nomes cimeiros, entre autores de língua inglesa, em filosofia continental, com estudos de referência sobre Levinas, Heidegger, Sartre, Derrida e sobre a temática do racismo. É um inteletual influente nos debates sobre o multiculturalismo nos Estados Unidos e no Reino Unido.

sábado, 12 de maio de 2012

Pode a política ser sexy?


A primeira condição para se ser sexy é ter uma boa imagem. Infelizmente é disso que a política sofre mais, deficit de apresentação e beleza - para já não falar de bondade natural e espontânea. O nosso ministro das finanças Vítor Gaspar até pode ser bom homem e gente honesta, até se pode vestir bem e andar com as costas sempre eretas, mas é a austeridade feita pessoa, o ar carrancudo, a dificuldade de sorrir e a testa enrugada atestam-no. Já o nosso bom ministro da economia é com certeza um sujeito aprazível, bonacheirão, polido e sincero, com quem sempre dá para meter dois dedos de conversa seja onde for sobre o assunto que for, mas, em contrapartida, também se parece com um daqueles típicos antigos colegas de turma que nem no intervalo saiam da sala, demasiado franzinos e adoentados para jogar à bola ou sequer para fazer uma cambalhota direita, que não se conheceram sem óculos e usavam sempre as calças apertadas acima do umbigo. Também Passos Coelho tem tiques de betinho, ainda que ninguém o possa acusar de ser desleixado, que sai de casa sem lavar os dentes ou sem acertar o risco sempre feito com toda a minúcia mas sempre feito ao lado. Já as nossas ministras são uma lástima, em perpétua negação da sua feminilidade, a única coisa que as distingue dos restantes senhores são os saltos altos, irão com certeza envelhecer mais depressa.
Poderão agora contra-argumentar, dizer que a política é uma coisa séria, que o que importa é a competência, que a política não pode ser pop nem kitsch. Mas destes políticos sérios e competentes estamos nós fartos, desses que ora nos dão e que ora nos tiram, sem que nós percebamos bem porque ora nos dão e noutra hora nos tiram. Desses a quem confiamos, pela sua competência e sabedoria (e já que todos foram alunos brilhantes nos tempos idos de colégio – exceto um ou outro analfabeto paraquedista), para fazer aquele que deveria ser o nosso trabalho, o trabalho mais importante de todos, precisamente aquele que subtrai ou multiplica postos de trabalho. No fim de todas as contas feitas, ninguém percebe nada, a malta dá-se toda bem, vai ao cinema, vê concertos de toda a m**** que houver com a mesada dos pais que houver e, se disso for necessário, faz-se uma vaca, bebe-se uns copos com os amigos e amigas, entre o fumo dos cigarros sempre acesos e o cheiro a café traem-se confidências, distribuem-se inconfidências, mas, estes políticos, parece que estão sempre de mal connosco, sempre distantes, sempre suspeitos, sempre a tratarem-nos da vida, para o bem e para o mal, amén! 
Porque quem tinha razão era o Miguel Portas, deus o tenha se o Miguel o quiser ter, “deixem o povo respirar”. Afinal, pode ou não pode a política ser sexy

David Santos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Uns serão salvos no afago de Deus, outros irão sentir sua fúria.



  Linha Geral: Este é mais um dos grandes problemas que caracterizam o vastíssimo e não sintetizável pensamento medieval: como conciliar a omnisciência e a omnipotência de Deus que fazem Deste uma força determinante e insubordinada à contingência temporal, com uma suposta liberdade humana onde o passado e o futuro funcionam como condicionantes e reguladores ativos da acção presente? E se realmente estes termos são inconciliáveis, como não dar indiscutível prioridade à vontade de Deus quando face à vontade do homem? Como não dar prioridade – ontológica – à necessidade divina face ao livre-arbítrio humano? Boécio, “o último romano”, nato em Roma em 480 findo em 524 ou 525 em Pavia, apresenta a sua proposta onde concilia o aparentemente inconciliável. 


 Como pode a liberdade humana ser articulada com a necessidade, com a Providência? Com uma presciência? 
 Será possível Deus ter determinado à partida quais os Homens que terão direito à salvação e quais os que não o terão? Não parece viável, nem de perto nem de longe, esta solução singela para o desdobramento do fado divino, pelo que, esforços surgiram, já na era medieval, nomeadamente com Boécio. Este último é um dos que se debruça, numa tentativa de articular Liberdade e Divina Providência(1). 
 Boécio concilia os dois termos supra referidos, na sua plenitude, de um modo muito hábil, encaixando a inteligência divina um patamar acima da razão humana, e, esta última, por sua vez, prevalecendo sobre os sentidos e a imaginação. 
 O filósofo caracteriza o espaço temporal em que cada plano se encontra, isto é, o plano do Homem numa sucessão temporal, numa cronologia; e, por sua vez, o plano de Deus na eternidade - assim conheceremos o carácter da ciência de Deus. É fulcral, na captação deste pensamento, que haja uma sólida distinção entre perpétuo e eterno. A perpetuidade é mais facilmente entendida se partirmos, na sua análise, da característica e condição temporária/temporal onde se situa o homem: um longo passado, um fugaz presente e um incerto futuro. Já na eternidade, o passado, presente e futuro conjugam-se num só tempo, perfeito e interminável – o plano de Deus, onde tudo ocorre em confluência. Assim, e perdoar-me-ão a redundância, bem como Platão, Boécio afirma que Deus no seu plano é eterno, e o Homem, na sua sucessão temporal, é perpétuo. 
 Passa assim, na diferenciação destes planos temporais, a haver espaço tanto para eventos necessários, com para eventos voluntários. Deus ao contemplar as coisas não transforma seu carácter, isto é, o livre arbítrio do Homem no mundo não entra em conflito com o conhecimento como um todo temporal de Deus, já que se encontram em diferentes planos. Sendo que Deus não interfere, poderá apenas contemplar nossos actos: recompensando os bons, castigando os maus… Enviando sinais? Criando obstáculos? 

(1)Providência., a razão divina que reside no mundo dos homens e constitui a harmonia dos eventos. A Divina Providência é imutável, já o destino apresenta-se na relação entre o carácter fixo da providência e o decorrer temporal do fado. 

 Bibliografia: 
Boécio, De Consolatione Philosophiae, livro V, (Consolación de la Filosofia, traducción del latim por P. Masa, prólogo y notas de A. Castaño Piñán, Buenos Aires, Aguilar, 1964)


Luís Mendes