quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Francis Fukuyama, A Construção de Estados − Governação e Ordem Mundial no Século XXI (Parte I).

Yoshihiro Francis Fukuyama nasceu a 27 de outubro de 1952 em Chicago é filósofo e economista político, atualmente desempenha a função de docente de Economia Política Internacional na escola Paul H. Nitze de Estudos Internacionais Avançados e na Universidade Johns Hopkins como diretor do Programa de Desenvolvimento Internacional. Foi ainda membro do concelho presidencial de bioética entre 2001-2004. De entre as suas várias obras referimos algumas: As Origens da Ordem Política (2011), América de Caminhos Cruzados: Democracia, Poder, e o Legado Neoconservador (2006), Confiança: As Virtudes Sociais e a Criação de Prosperidade (1995), e O Final da História e do Último Homem (1992).
Abordando a obra que hoje serve de tema para o nosso pequeno texto, ela encontra-se dividida em quatro capítulos: o primeiro tem como assunto as dimensões perdidas do Estado; o segundo, os estados fracos e o caos da sua gerência pública; o terceiro, a legitimidade internacional destes Estados; e, por último, mais pequeno mas mais forte.
Começando por analisar o primeiro capítulo, o autor revela que o Estado já existe desde as primeiras civilizações agrícolas na Mesopotâmia há cerca de 10 mil anos. Abordando-nos com os estados chinês (a sua administração pública altamente qualificada) e europeus (a capacidade de impor a sua autoridade sobre um vasto território através dos seus exércitos). E de que foi a necessidade de criar leis e de as fazer cumprir, tal como a capacidade de assegurar segurança e direitos de propriedade, que se chegou ao Estado de direito moderno. Estas funções do Estado tanto podem ser usadas para o bem como para o mal; basta tomarmos como foco o direito e a sua capacidade coerciva, pois assim como garante as propriedades dos cidadãos também as expropria pelos mais diversos motivos.
Avançando, ao longo do século XX assistimos à criação de novos Estados, alguns que já existiam passaram por uma política nazi totalitarista. E é neste cenário que os Estados passam de um âmbito reduzido para mais centralizado e ativo; mas que com a chegada dos anos 80 este crescimento do setor público foi travado para abrir portas à privatização, como, por exemplo, a América Latina, por razões de dívida pública. Contudo, Fukuyama alerta-nos para uma cuidadosa seleção dos setores que devem ser privatizados, pois ao reduzir de um lado deve fortalecer no outro, tendo em conta as reações de economia.
Como definir um estado forte ou fraco? Existem duas definições. A primeira defende que um estado fraco é aquele que deliberadamente põe entraves ao exercício do seu poder. A segunda definição está intimamente ligada à força militar, denotando-se que quanto mais forte for um Estado mais forte será a sua força militar.
Como depreendemos, o âmbito do Estado são as funções e os objetivos do governo; já a força de um Estado está centrada na identificação e execução de políticas e cumprimento de leis. Quanto ao âmbito das funções do Estado, elas dividem-se em três categorias: funções mínimas (bens e serviços públicos essenciais, como a saúde e segurança), funções intermediárias (regulação económica, educação e segurança social) e funções ativas (política industrial e justiça distributiva); certas categorias resultam em diversas funções em que a capacidade do Estado pode variar de um extremo ao outro. Como demonstrar isto ao nível do desenvolvimento económico? Isto exemplifica-se com um Estado que desempenha funções limitadas e institucionalmente forte e eficaz, por exemplo os E.U.A, no extremo exatamente oposto temos um Estado que assume um vasto leque de atividades que não pode cumprir, como a Serra Leoa. É este último ponto que caracteriza os países em vias de desenvolvimento. É também neste género de países, como o Zaire do regime de Mobutu Seko, que surge um comportamento predatório que retira os recursos destinados à sociedade para os concentrar num só indivíduo, favorecendo familiares ou apoiantes, como acontece nos regimes   neopatrimoniais.
Para além dos regimes neopatrimoniais, outro fator que contribui para prejudicar o desenvolvimento económico desses países em vias de desenvolvimento é a ineficácia das instituições públicas que podem funcionar como um entrave para o surgimento de pequenas e médias empresas, o mau controlo do negócio paralelo e redução dos horizontes de investimento. A par disto à que ter em conta o vetor cultural, pois, por esta razão, excelentes teorias que foram aplicadas com sucesso em certos países acabaram por ser contraproducentes noutros países. Acrescentando, que os países que são alvo de intervenção da Comunidade Internacional acabam por ver as suas instituições públicas desmanteladas no que respeita às suas capacidades pelas seguintes razões: contradição entre os objetivos dos doadores e os objetivos que a ajuda internacional visa servir.    



                                                                                                                         Fernando de Almeida. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Luís Sttau Monteiro, Felizmente Há Luar

Luís Sttau Monteiro nasceu em Lisboa em 1926, com 13 anos mudou-se para a capital inglesa, Londres, onde o pai trabalhava como embaixador. Posteriormente,  voltou outra vez para Portugal para concretizar a licenciatura em Direito, pela Universidade de Lisboa, tendo desempenhado as funções de advogado durante um curto período de tempo. Veio a falecer em 1993.
Em 1960 edita o seu primeiro livro, um romance, intitulado Um Homem não Chora, no ano seguinte são lançadas mais duas obras: Angústia para o Jantar, que o projetou para a ribalta da literatura portuguesa, e a peça teatral Felizmente Há Luar. A estas, juntam-se outras obras de referência: Todos os Anos pela Primavera (1963); O Barão (1964); Auto da Barca do Motor Fora de Borda (1966); A Guerra Santa (1967); A Estátua (1967); As Mãos de Abraão Zacut (1968); Sua Excelência (1971); E se For Rapariga Chama-se Custódia (1978); Crónica Atribulada do Esperançoso Fagundes (1980) e Chuva na Areia (1982).
Abordando a obra Felizmente Há Luar, esta peça de dois atos só foi apresentada pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria em 1978. Denotando-se que a ação da peça estabelece um paralelismo entre a época vivida até à Revolução de 1920[1] e a época que abrange o período do Estado Novo, arquitetado por António de Oliveira Salazar. E o mesmo se comprova com a personagem ausente, e na qual gira toda a ação do drama, o General Gomes Freire D’Andrade (1757-1817)[2] e o General Humberto Delgado (1906-1965)[3]. Sendo este paralelismo histórico uma estratégia comunicativa, utilizada com o fim de transmitir a mensagem que aspira à liberdade e à emancipação do povo por entre as redes apertadas da censura vivida até ao 25 de abril.  
Como personagens temos: Manuel (o mais esclarecido entre os populares pois reconhece a sua impotência para mudar o poder que está instituído), Rita (a mulher de Manuel e a que assiste à detenção do General Gomes Freire D’Andrade), o Antigo Soldado (que serviu sob as ordens do General), Vicente (um membro do povo, mas que tem vergonha do seu berço e, por isso, ambiciona um estatuto social mais elevado tirando partido da denúncia e da lisonja para atingir essa ambição), Dois polícias (que procuram aproveitar a glória alheia, neste caso do cargo que D. Miguel oferece a Vicente), Vários populares (que constantemente estão presentes), D. Miguel Forjaz (representante do poder político, governador do reino, com desejo de manter o status quo e de caráter prepotente), Beresford (governador do reino representando o poder militar, sendo o tom de zombeteiro o mais dominante ao longo desta peça, especialmente nos diálogos com Principal Sousa, homem prático, e com desprezo pelo país devido à sua mediocridade), Principal Sousa (governador do reino figurando o poder secular e um hipócrita), Morais Sarmento e Andrade Corvo (dois denunciantes que procuram recompensa), Frei Diogo de Melo (um frade que não ingressou no clero por riqueza nem por poder, ao contrário de alguns), António de Sousa Falcão (amigo leal de Matilde de Melo e do General Gomes Freire D’Andrade), Matilde de Melo (esposa do General Gomes Freire D’Andrade) e o General Gomes Freire D’Andrade (embora seja uma personagem fisicamente ausente da história ele constitui a temática omnipresente de toda a ação da peça).
A nossa história começa com a personagem Manuel, que no seu monólogo denota a sua impotência perante diversos acontecimentos que têm repercussão nacional, a ele junta-se um popular que lhe responde, da maneira mais caricata, que Rita chegou por volta das 5 horas segundo o seu relógio de ouro, gozando e realçando ainda mais a sua miséria na qual o resto do povo vivia mergulhado. Normalmente, especialmente no primeiro ato, a conversa entre os populares é acompanhada com o som de fundo dos tambores, símbolo da repressão e do poder. No meio destes populares, encontramos um antigo soldado do General Gomes Freire D’Andrade que o retrata como se fosse a esperança do povo capaz de se bater com os reis do Rossio além de ser um homem integro. Mas que é contrariado por Vicente que o aponta como mais um general que apenas quer saber dos seus soldados enquanto estes ainda lhe são úteis e, para terminar, que Gomes Freire era um estrangeirado.
Apesar da argumentação, não interessa o que Vicente diga que os populares ainda continuam com esperança no general, como o desabafa o próprio Vicente na conversa que tem com os dois polícias, no caminho para se encontrar com Miguel Forjaz, e na  qual expõe a sua vergonha que tem em pertencer aos da sua classe social denunciando a vontade de ascender socialmente não importando o quê; o primeiro polícia trata de lembrar a Vicente de que foram eles os portadores da boa nova, com o intuito de beneficiar da promoção deste. Quando Vicente é apresentado a D. Miguel que lhe fala com um tom de prepotência, que é notório quando Vicente lhe revela o que o povo diz acerca de Gomes Freire D’Andrade, ele retruca-lhe que aquilo que o povo diz não tem qualquer valor. Este quadro sai realçado quando Principal Sousa surge pela primeira vez, pelo seu trajar demonstra uma Igreja que não está interessada em defender os princípios da virtude que prega, mas antes, em manter o seu estatuto e poderio, acabando por apresentar a seguinte tese: que a voz de Deus é a voz do rei e não a voz do povo. Ora para a manutenção deste sistema de governo, recorre-se ao incentivo da denúncia como se contempla, no primeiro ato, no diálogo entre Vicente e D. Miguel, em que este promete um cargo como chefe da polícia ao primeiro. Outra personagem importante neste jogo de interesses é Beresford, que no trio do governo representa o poder militar e, também, a visão de um estrangeiro sobre Portugal, que predispondo-se a colaborar com D. Miguel e Principal Sousa desde que estes sirvam os seus interesses, nomeadamente monetários, para compensar o tempo que perdeu num país que despreza. E que se desvela no momento em que observa a paisagem portuguesa, de árvores entisicadas e prados secos, em comparação com a paisagem verdejante da sua terra natal, chega mesmo a ironizar afirmando que as árvores entisicadas parecem terem sido plantadas pelo Principal Sousa. Crítica o raquitismo intelectual, centrado sobretudo em teologia, a própria incultura do povo e o exército pindérico.
É neste jogo de conveniências e num momento em que se suspeita que se está a organizar uma conjura contra os senhores do Rossio, que este trio começa a magicar em alguém que seja proveitoso para executar como chefe da rebelião, e é neste contexto que a personagem ausente na nossa história e que está cativa em S. Julião da Barra se apresenta como alvo. Sendo a justificação para a sua condenação, como o diz D. Miguel, se não é por eles é contra eles, numa alusão clara à atitude do regime salazarista, ou, como mais tarde viria afirmar o marechal Beresford diante de Matilde: que a existência de certos homens já é um crime.
Ora é no segundo ato que surge, pela primeira vez, Matilde de Melo em conjunto com António Falcão que tudo fazem para tentar libertar Gomes Freire, mas sempre em vão. Tanto dirigindo-se aos reis do Rossio como aos elementos do povo; em que Manuel, no segundo ato, lhe desabafa a sua vulnerabilidade perante os diversos acontecimentos, o quanto as classes mais favorecidas procuram tirar proveito da classe mais indigente, não lhe dando nada em troca. Já conformada com o destino que está reservado ao seu companheiro, Matilde juntamente com Sousa Falcão vão assistir à execução de Freire D’Andrade, durante o evento Matilde usa um vestido verde simbolizando a esperança de que algo iria mudar e que sai reforçado pela sua última expressão na obra e que constitui justamente o seu título, e no momento em que a chama da execução começa a atingir o seu apogeu em S. Julião da Barra, Matilde começa a imaginar-se ao lado do seu marido a ajuda-lo a vestir a farda.
Terminando com as nossas habituais questões: será que ainda hoje, considerando que vivemos numa democracia, vivemos num sistema que ainda é repressivo pois exclui aqueles que pensam e agem de forma diferente daquilo que está estabelecido ou que controla a informação que vem a público? Será que, um pouco à semelhança do texto, o poder ainda é muito centralizado? E, ainda à semelhança da obra, favorece a desigualdade e a exclusão social? Será que o povo não tem intervenção direta na maior parte das decisões, especialmente as mais importantes, que presidem no nosso país? E, finalmente, será que somos todos como a personagem tipo Manuel?  

ANEXO I

Estamos a referir-nos ao período que abrange as invasões francesas (1807-1811) e do governo provisório que se instalou nessa altura até à Revolução de 1820. Nos dias que se sucederam à primeira invasão francesa (1807), liderada por Junot, as pilhagens praticadas pelos soldados franceses e espanhóis eram usuais; sendo o exército português transformado numa «Legião Lusitana» ao serviço de Napoleão. Em 1808 foi nomeada uma Junta Provisória presidida pelo bispo do Porto. É também neste ano que os soldados britânicos desembarcam na Galiza atravessando as fronteiras portuguesas em Julho para se defrontarem com os franceses nas batalhas da Roliça e do Vimieiro, forçando Junot a pedir um armistício. Em Setembro os franceses embarcam para França, levando consigo uma parte do saque.
A antiga regência que tinha sido nomeada por D. João VI foi restabelecida, mas agora sob a tutela do Marquês das Minas. Depois de voltar à ordem, o país prepara-se para enfrentar uma futura invasão, esta preparação defensiva ficou a cargo do general britânico William Beresford (março 1809), sendo eleito marechal-de-campo do exército português, governando o país até 1820.
Terminado o período das invasões francesas, Portugal fica sob o protetorado inglês e, simultaneamente, como uma colónia brasileira, pois a corte tinha-se mudado para o Rio de Janeiro a quando da primeira invasão francesa. A regência que se mantinha em Portugal seguia uma orientação absolutista, perseguindo todos aqueles que eram vistos como liberais. São estes acontecimentos que geraram descontentamento popular e que mais tarde levariam à revolução civil.
  
ANEXO II

Gomes Freire de Andrade nasceu a 27 de janeiro de 1757, em Viena, filho de Ambrósio Pereira Freire de Andrade e Castro, que colaborou na empresa do Marquês de Pombal contra os Jesuítas e embaixador de D. José I na Áustria, e da condensa Elisabeth von Schaffgostch. Após ficar órfão de pai, aos 17 anos, voltou com a mãe e a irmã para Portugal, onde se alistou no exército. Como militar realizou um percurso notável, destacando-se pela sua bravura e capacidade de liderança, do qual ilustramos alguns exemplos: em 1784, na Armada Real espanhola e sob as ordens de Carlos III, participou como guarda-marinha participou no bombardeamento de Argel; nos anos 1788-1789 serviu no exército da czarina Catarina II, sob o comando do príncipe Potemkine, na guerra contra a Turquia, sendo condecorado com a ordem de S. Jorge e promovido a tenente-coronel pela própria czarina. Entre 1808 e 1811 serviu na “Legião Portuguesa” (criada por Jean-Andoche Junot e chefiada por Gomes Freire e pelo Marquês da Alorna), que obedecendo à vontade de conquista de Napoleão Bonaparte, preparou a invasão à Rússia em 1811.
Em 1815 Gomes Freire voltou a Portugal, aderindo à Maçonaria na qual foi terceiro grão-mestre (1816). Em maio de 1817, participou numa conspiração que punha em causa a pertinência do protetorado inglês e que era representado por William Beresford. Nesse mesmo ano, a 18 de outubro, é condenado à morte pelo crime de traição à pátria, juntamente com 11 oficiais, entre eles: o coronel Manuel Monteiro de Carvalho, os majores José Campelo de Miranda e José da Fonseca Neves, sendo executados na forca no forte de S. Julião da Barra, em Oeiras. Depois de enforcado, o corpo de Gomes Freire foi mutilado e queimado, sendo os seus restos mortais enterrados no areal.

ANEXO III

Humberto da Silva Delgado nasceu a 15 de maio de 1906 em São Simão da Brogueira (conselho de Torres Novas). Terminou o Colégio Militar em 1922. A 28 de maio de 1926 participou no movimento militar que derrubou a República Parlamentar para dar lugar a uma Ditadura Militar e que antecedia à implementação do Estado Novo encabeçado por Salazar. Existem alguns acontecimentos da vida de Humberto Delgado que gostaríamos de referir, tais como: a sua participação nos acordos secretos com a Inglaterra a respeito da construção de Bases Aliadas nos Açores durante a Segunda Guerra Mundial e, em 1952, foi membro do comité dos Representantes Militares da NATO. Recebeu diversas menções honrosas, mencionando algumas: Oficial da Ordem Militar de Avis (24 de dezembro de 1936); Comendador da Ordem Militar de Cristo (11 de abril de 1947); Oficial da Legion of Merit dos Estados Unidos (17 de setembro de 1955); e Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (30 de junho de 1980, a título póstumo).    
Na sua vida política, em 1958, concorreu nas eleições como opositor a Américo Tomás (candidato do regime do Estado Novo). Ganhando popularidade quando numa conferência de imprensa, a 10 de maio de 1958 no café Chave de Ouro, em Lisboa, um jornalista perguntou a Delgado o que é que este faria se fosse eleito, ao qual este respondeu: “Obviamente, demito-o!”. A derrota eleitoral em 1959, devido à fraude eleitoral montada pelo regime e a par das ameaças da polícia política, obrigaram Delgado a pedir exílio no Brasil. Em 13 de fevereiro de 1965, pensando reunir-se com opositores do regime, caiu numa emboscada montada pelos agentes da PIDE na fronteira espanhola Villanueva del Fresno, onde morre assassinado. A 19 de julho de 1988, a Assembleia da República decide transladar os restos mortais de Humberto Delgado para o Panteão Nacional.  

Bibliografia:

Conceição, J. & Gabriela, L. (2003), Felizmente Há Luar! de Luís Sttau Monteiro, Porto: Porto Editora.
Marques, A. (1978), História de Portugal, Lisboa: Palas Editores, p. p. 577-581.
Oliveira, F. (1999), “Monteiro (Luís de Sttau)” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa III, Lisboa: Editorial Verbo, p. p. 905-908.
S.A, Humberto Delgado, s.d., retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_Delgado em 29 de Outubro de 2013.  
S.A, Gomes Freire de Andrade, s.d., retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gomes_Freire_de_Andrade em 31 de Outubro de 2013.



[1] Ver anexo I no final do artigo.
[2] Ver anexo II no final do artigo.
[3] Ver anexo III no final do artigo.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Ramalho Ortigão, Histórias cor-de-rosa

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto a 24 de Outubro de 1836. Foi magistrado, jornalista e escritor. Decorria o ano de 1865 quando se envolveu na tão afamada Questão Coimbrã. Desenvolveu laços com o grupo das Conferências do Casino e, em especial, com Eça de Queirós com o qual colaborou na elaboração d’O Mistério da Estrada de Sintra. Como resultado desta íntima amizade, iniciou a edição d’As Farpas, estávamos então no ano de 1871. Veio a falecer em Lisboa a 27 de Setembro de 1915.
A obra que aqui vamos desfiar é composta por seis histórias: 1ª) A Dança; 2ª) A morte de Rosinha; 3ª) Gastão: Memórias da Mocidade (dividida em 8 capítulos); 4ª) Ele e Ela; 5ª) Uma visita de pêsames: Página da vida burguesa; 6ª) Na aldeia. Sendo esta obra essencialmente de cariz romântico.
No caso da primeira história a dança é a temática pungente, saber quem é que a inventou se foi a Deusa Ops que ensinou os sacerdotes dos templos de Creta e Phrygia a dançar ou se foi Pyrrho, filho de Achilies, para expressar a sua dor no dia do enterro do pai. Mas não no retemos apenas por aqui, o nosso narrador também aborda os mais diversos géneros de dança, tais como: a valsa que é considerada como algo de tão sensual como um beijo solto ou o cancan francês como algo de exuberante. A par disto, e ainda associado à dança, encontramos alguns episódios burlescos como o do cardeal Richelieu que dançou a sarabanda nos aposentos da senhora de Chevreuse (Ana de Áustria, esposa de Luís XIII).
 Na segunda história, temos o relato da morte de uma rapariguinha de 7 anos com cabeça loira e olhos azuis, de seu nome Rosinha, que sabia que iria morrer mas a crença na vida após a morte confortava-a de alguma maneira. Esta inevitabilidade causava na mãe uma grande angústia que recorreu a tudo ao que estava ao seu alcance para a resgatar do regaço da morte. Este relato, segundo o narrador, é dedicado a Clarice que queria uma história factual.  
Na terceira história, temos o relato amoroso de Gastão com Fanny. Uma história que começa quando Gastão tem 18 anos e Fanny na flor dos seus 30 anos, educada no Sacré Couer, alegre, modesta e de admirável cultura. Os dois passavam as tardes juntos na casa dela, situada no meio de um bosque de castanheiros, a tocar Beethoven e Mendelssohn. Pouco depois, Gastão teria que partir para Madrid, Espanha, com o barão C…, amigo de seu pai, para aí permanecer durante dois meses. Após esse período, muda-se para França, primeiro em Hombourg-ès-Monts, onde teve uma paixoneta com uma mulher animada pelo desejo e pela travessura. Viera a separar-se dela na estação, pois vira-a a namoriscar um hussard no café da gare, no ímpeto saltou para a carruagem em que seguiam agarrou nos seus pertences e mudou-se para o primeiro comboio que vinha de Paris, na segunda ou terceira estação muda-se para o primeiro trem que segue com destino a Paris. Em Paris envolve-se num duelo de espadas com o conde Toscolo por uma mulher: Dama Branca. De volta a Lisboa, em 1868, temos Gastão com trinta e dois anos de idade desiludido com a vida a trocar correspondência com a Madame Veuve de L…, seu antigo amor (Fanny), agradecendo-lhe pela sua convivência e por ter sido a sua mentora; por outro lado, Fanny pede-lhe que deixe o amor que foi vivido pelos dois em paz e enterrado, pede-lhe apenas que fiquem como amigos. No entanto, no final Gastão contempla o vulto de Fanny através de uma vidraça de uma casa situada num vale no meio de um bosque de amendoeiras, estabelecendo uma assimilação entre a casa e uma urna e na qual ficaria para sempre sepultada a memória do seu primeiro amor. Nas cartas trocadas entre os dois destaca-se, também, outro assunto: a mediocridade e esterilidade da política portuguesa, fazendo uma comparação com a política inglesa que sempre era mais prudente e produtiva.
Na história de Ele e Ela, o relato de uma viagem de comboio entre um português que tinha vindo de Paris na companhia de uma moça alemã. Pernoitando no hotel Bragança para na manhã seguinte seguirem para Santa Apolónia em direção ao Porto. No vagão aproveitam para se conhecerem melhor, enquanto jogavam às cartas. O nosso narrador começa por desvelar que é um jovem dos seus 30 anos, pobre e de génio apaixonado, de dedos finos; ela confessa-lhe que é amada mas que esse amor nunca chegou a ir além da correspondência. Após essa conversa, ela oferece-lhe uma laranja e enquanto ele a comia, uma corrente de ar rapta-lhe o chapéu, perante tamanho embaraço do cabelo despenteado; o senhor S. M. ofereceu-lhe um chapéu que estava guardado na sua caixa de chapéus, contudo saiu pior a emenda que o soneto. Com um chapéu ridículo que lhe engolia a cabeça e que mais parecia um barrete ornamentado com amores-perfeitos, o que provocou na alemã duas gargalhadas e a afirmação de que o amava. Terminando com a comparação do chapéu a um túmulo das suas ilusões para um formoso dia, ao fim da sua imagem de felicidade.
Na história posterior, temos como cenário um velório na freguesia da Sé, no Porto, em honra de Josefa Teixeira esposa do lojista Serafim Gonçalves. E das hostilidades entre este lojista e o capelista Eusébio Anjos. As hostilidades remontam a uma questão de supremacia em que os dois concorreram pela mesma confraria numa procissão. E que estoirou quando, no velório, o regedor deu a conhecer ao merceeiro que a defunta tinha vendido o ouro para entregar o dinheiro ao António para abrir um negócio, cujas escrituras e recibos estavam em nome deste, e cujo irmão ficou a tomar conta do boticário. Este irmão estava a viver em casa de Eusébio. Sabendo disto, Serafim inicia uma briga com Eusébio, não deixando este de lhe dar troco. No calor da briga surge um clérigo a anunciar que a defunta está viva e que apenas tinha sofrido um letargo. Ela surge para felicitar o marido pela sua lealdade e perdoa-o pelos seus relacionamentos extraconjugais e pela sua forretice. Daqui chega-nos a seguinte moral: assim como o homem deve ser comedido nas suas cobranças também a mulher o deve ser à mesa.
A nossa última história, Na aldeia, decorre na época da apanha das castanhas, retratando o amor vivido entre Pedro, criado de João Serras, e Margarida, filha deste. Passados cinco meses após a apanha dos ouriços e de ouvir vários boatos de que se passava qualquer coisa de estranho e de sobrenatural na casa do tio João da Serra, como era conhecido. João da Serra senta-se à mesa de forma severa e decide que a filha Margaridinha iria dormir no quarto dos progenitores. Já ele e o seu filho mais velho iriam esperar armados no quarto de Margarida a aguardar que alguém abrisse a janela, daí a pouco tempo surge um vulto masculino imediatamente ouve-se um tiro e o barulho de um corpo a cair no chão. No dia seguinte descobre-se que esse vulto pertencia a Pedro, sendo o seu enterro nesse dia e comparecido por Margarida e alguns habitantes da zona. De desgosto, Margarida suicida-se caindo numa azenha.   
Como é usual, lançamos algumas questões ao nosso caro leitor: Qual será a origem da dança? Será que existe vida para além da morte? O que é o amor? Na última história, parece-nos indicar um Portugal de gente embrutecida, será que esse género de comportamento ainda hoje se mantem?

Bibliografia:


Ferraz, M. (1999), “ORTIGÃO (José Duarte Ramalho)” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. III, Lisboa: Editorial Verbo, p.p. 1303-1307.  

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Júlio Dantas, 1023

Júlio Dantas nasceu no conselho de Lagos em 1876, desempenhou diversas funções ao longo dos seus 86 anos, tais como: médico, político, diplomata e escritor. Nesta última atividade, damos destaque à sua vasta poligrafia que se estende desde a poesia até ao jornalismo, no entanto foi o teatro que lhe granjeou mais fama, sendo a peça A Ceia dos Cardeais (1902) a mais conhecida. Ainda dentro desta ocupação, Dantas foi eleito sócio da Academia de Ciências de Lisboa (1908). Era considerado retrógrado por alguns intelectuais da época, como Almada Negreiros que o expõe ao ridículo com o Manifesto Anti-Dantas. Júlio Dantas veio a falecer em Lisboa em 1962.
Lançou a sua carreira como jornalista no jornal Novidades em 1893. De entre as suas melhores obras constam Paços de Vieiros (1903) e Reposteiro Verde (1921) de pendor claramente naturalista[1]; contudo nas suas peças teatrais segue uma tendência que se situa entre romantismo[2] e o parnasianismo[3]; já nas novelas tem por preferência temas históricos. De uma forma planetária, defende nas suas obras o culto do heroísmo, da elegância e do amor, situando a trama das suas obras de forma quase incontornável no século XVIII, para demonstrar o degenerar da aristocracia dessa época. Outras temáticas que estão igualmente presentes nas suas obras são a exaltação do efémero, da morte e do sentimentalismo lancinante. O seu trabalho poético é nitidamente inspirado na lírica palaciana de Garcia de Resende presente no Cancioneiro Geral.
Além das obras já mencionadas, denominamos ainda algumas outras tais como: Nada (1896) e Sonetos (1916), na poesia; no teatro O Que Morreu de Amor (1899), Viriato Trágico (1900) e A Severa (1901)[4] ; na prosa temos Outros Tempos (1909), Pátria Portuguesa (1914) e Marcha Triunfal (1954), finalizando com as traduções Rei Lear (William Shakespeare), Cyrano de Bergerac (Edmond Rostand) e O Azougue (Paul Saumière).
A obra que hoje vai servir de análise é a peça teatral 1023 escrita em verso que foi representada pela primeira vez, em março de 1914, no teatro a República, em Lisboa. Que conta com a interação entre cinco personagens (um cauteleiro, um carteiro, um sujeito que lê, uma bonne e uma criança); destas, o cauteleiro e o carteiro desempenham o papel principal. Decorrendo a ação num jardim público em Lisboa.
A história entre estas duas personagens principais começa quando o cauteleiro pergunta afetuosamente ao ti’ Romão (carteiro) se quer uma cautela. Sendo que o dialogo que se estabelece entre eles se centra no motivo pelo qual o cauteleiro deixou a sua profissão de carteiro. O motivo apresentado pelo cauteleiro foi uma mulher, de seu nome Rosa, uma engomadeira (airosa, de pele formosa, que vivia com o irmão que ainda era pequeno, pobre e alegre) que a cada oito dias recebia uma carta provinda do Rio, no Brasil, provavelmente de amores.
O cauteleiro revela que até chegou a pregar uma travessura à rapariga, dizendo-  -lhe que ainda não tinha chegado a carta, temendo que ela desmaiasse entregou-lhe a carta deixando-a em êxtase. Porém, um dia, a carta não chegou, o que lhe passou pela cabeça foi o de dar uma mentira piedosa à rapariga que seria a chegada atrasada da embarcação Avon que trazia as cartas. Passados 15 dias o então carteiro começa a estranhar a ausência da pequena engomadeira; perguntou a uma das vizinhas o que era feito da Rosa, ao que uma vizinha lhe responde que Rosa se encontrava doente; o carteiro vai-se embora para finalizar a sua distribuição. Só passadas duas semanas, após este episódio, é que volta a receber a carta provinda do Rio, numa quarta-feira, o deixou o carteiro feliz como se fosse levar a salvação, melhor, a vida à Rosinha. Mas quando chegou à morada, ela não estava lá para lhe abrir a porta, voltou a ir perguntar às vizinhas do piso inferior o que era feito da engomadeira; as vizinhas responderam que a Rosinha tinha morrido de desgosto por causa de o namorado a ter deixado, de que havia boatos de que ela o andava a trair. O carteiro foi cumprir a sua missão de levar a última carta à última morada da sua destinatária, no cemitério dos prazeres. Chegado à campa, abriu a carta e leu o seu conteúdo, que era o seguinte: um pedido de desculpa por ter acreditado num falso boato de que ela lhe era infiel e de que vinha a Portugal para se casar com a amada. Terminada a leitura, o carteiro num gesto simbólico deixa a carta em cima da campa junto ao coração. Um par de horas depois, pede a demissão.
E foi por esta razão que veio para cauteleiro, para vender a sorte, mas à seis meses que não a vendia, até ao presente dia em que o carteiro lhe compra o número da sorte, contudo a emoção de ter ganho foi tão avassaladora que o carteiro Romão acaba por se finar, o que deixa o cauteleiro em choque, os transeuntes convergem para o local por mera curiosidade. Terminando a peça com a frase do cauteleiro de que era a primeira vez que entregava a sorte grande.
Concluindo, o episódio que aqui descrevemos aparentemente dá grande importância às coisas simples e banais da nossa vida: como o amor, a sorte, a tristeza e a alegria; mas não são estas banalidades as coisas mais importantes da nossa vida? Na analepse narrada pelo cauteleiro demarca-se um certo amor platónico pela Rosinha, mas este tipo de amor também não é comum a todos nós? Mas antes disto, o que é o amor platónico?

Bibliografia:

Azevedo, S. & Guimarães, F. (1999), “PARNASIANISMO” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. III, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 1411-1418.

Baptista, T. (2008), A Invenção do Cinema Português, Lisboa: Tinta-da-China, p.p. 32-35.  

Brayner, S. & Reis, C. (1999), “NATURALISMO” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. III, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 1045-1053.

Chorão, J. (1997), “DANTAS (Júlio)” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. II, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 5-6.

Monteiro, O. & Ribeiro, M. (2001), “ROMANTISMO” in AAVV            , Biblos: Enci-clopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. IV, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 963-986.

Ribeiro, F. (1983), Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português: 1896-1949, Lisboa: Cinemateca Portuguesa, p.p. 279-292.

S. a., Júlio Dantas, s. d. , retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BAlio_Dantas em 17 de Abril de 2013.



    



 




[1] Corrente anti-idealista e anti-romântica que se situa em princípios dos anos 60 do século XIX, com uma função crítica e reformista seguindo uma matriz positivista muito centrada que acredita que as leis naturais comandam os comportamentos humanos e a sociedade, e que tem como fundamento o determinismo da hereditariedade, do meio e da educação. Cabe, então, ao autor o estudo do meio, das ideias que circulam nesse espaço geográfico, a hereditariedade, etc.   (Brayner & Reis, 1999).
[2]Esta corrente foi introduzida na cultura europeia no princípio do século XVIII e que perdura até praticamente ao seu final. Desenvolve como temática o espírito humano (a disposição dionisíaca que coabita com a imaginação e a sensibilidade que predominam sobre a razão) em que o disforme da exposição estética tem como contrapeso o classicismo. Sendo fortemente influenciada pelo contexto sociocultural, que se estendeu a diversas áreas tais como: filosofia, arte e literatura. Em que o autor segue uma filosofia espiritualista do «eu» (auto-afirmação, exaltação sentimental, religiosidade vaga, o desconsolo e a frustração), que é alimentada pela agrura da condição humana, a tensão entre a futilidade e crueldade social com a índole de liberdade que só podem ser preenchidas no sonho ou na morte, a qual possibilita ao autor pluridividido recuperar a sua unicidade já despojado das máscaras sociais (Monteiro & Ribeiro, 2001).  
[3] Corrente literária presente a partir do século XIX como uma reação ao romantismo. Tendo como caracter a beleza formal, os temas exóticos e pictóricos servidos numa poesia ou narrativa de forma descritiva (Azevedo & Guimarães, 1999).   
[4] A título de curiosidade, foi a sua obra teatral A Severa, de Júlio Dantas, que inspirou o realizador José Leitão de Barros a produzir o primeiro fonofilme português, em 1931, exatamente com o mesmo título (Baptista, 2008 & Ribeiro, 1983).       

terça-feira, 11 de junho de 2013

Mais além do que as alternativas

Tem-se discutido muito, mais intensamente desde há um ano para cá, sobre as alternativas à governança não só deste governo, como da UE, como extensivamente, das tendências hegemónicas de uma forma de globalização que se pretende cada vez mais "unilateralizada" - nomeadamente, por meio da liberalização/abertura das economias mundiais, da desregulação dos mercados financeiros, do domínio tácito do pensamento económico das vantagens comparativas, do processo de "desdemocratização"  por imperativos da competição global... 
A emergência na esfera pública da discussão sobre as alternativas, mais que deve, só pode ser contemplada como uma forma de resistência a esta tendência que o actual governo, mais troikista do que a troika, cumpre com zelo e acelera. Mas, não nos deve falhar a consciência, de que os princípios e os instrumentos fundamentais, em matéria tanto política quanto económica, já estão aí. Tanto da dextra como para a canhota, os princípios basilares das grandes opções políticas há muito que vêm sendo trabalhados ao longo da história, e culminam, sem ser de todo exaustivo, no pensamento de autores como Karl Marx, John Rawls e Robert Nozick. Acreditando que toda a nova proposta de organização das sociedades humanas (e  o pensamento derivado da tradição ecológica, neste sentido, tem para mim um sentido promissor muito forte), terá sempre de revisitar um ou dois ou todos estes autores, ou, pelo menos, o seu legado cultural, que, de forma mais ou menos consciente, se introduziu na nossa massa genética e faz parte do nosso património civilizacional. Antecipando apenas que, de facto, hoje, não estamos de todo a discutir princípios, ou, melhor, estes princípios estão a ser discutidos em circuitos sem a força coerciva daqueles que visam aplicá-los sem discussão - creio que é preciso denunciar bem alto este fenómeno, que, nesse aspecto, não é originalidade da magistratura do governo de agora, faz parte mesma da essência política, da concepção weberiana do Estado enquanto monopólio da violência.
Da mesma forma, ao nível das instituições, as sociedades ocidentais estão igualmente avançadíssimas. Na tradição do ditame clássico dos "checks and balances", o ocidente não apenas tem colocado freios a si mesmo (necessidade iminente para leituras antropológicas "negras" como as que percepcionam o homem como lobo do homem), como, arrisco, tem substituído sucessivamente a defesa de uma ética do exclusivo interesse próprio (propícia a todo o tipo de corrupção) pela defesa de valores extra-pessoais/comunitários - particularmente, no funcionalismo público, com a consciencialização da "classe", da sua função basilar enquanto alicerce do Estado moderno. 
Acreditando na moldura aqui traçada, fica a pergunta: e, se é assim, o que nos está então a falhar, tendo em conta que princípios e instrumentos estão à mão da nossa mão?
Não ambicionando ser conclusivo, enfatizo, uma outra vez, a necessidade de lutar pela re-democratização dos Estados-nação e a democratização das instituições supranacionais, acrescentando apenas, o aprofundamento da territorialização. Isto é, o arranjo a todos os níveis - político, cultural, ecológico, económico... - de economias participativas, baseadas no trabalho dos recursos endógenos e na deliberação colectiva. Não esquecendo claro, que problemas globais requerem soluções globais, e que a força política da troika pode ser deduzida do facto de passar à margem do escrutínio popular e na negação coerciva  do ampliamento da esfera pública transnacional, o que, friso, tem sido uma boleia muito bem aproveitada pelo governo de Passos Coelho. Concluindo, mais do que revisitar as soluções alternativas é preciso forçar a institucionalização dos espaços em que estas possam, pelo menos, ser discutidas para além do seio "marginal" da sociedade civil e do seu voluntarismo notável. 

David Santos.  


quarta-feira, 5 de junho de 2013

Em democracia não deve haver governos impopulares


Agora anda em voga o argumento, que procura restaurar um mínimo de credibilidade a este governo pela hora da morte, que justifica a impopularidade deste pelo facto de tomar medidas anti-populistas, mas que, friso, tomam por absolutamente necessárias à resolução de dados problemas estruturais de Portugal, e que, enfim, apesar da sua impopularidade intencionam, no médio longo prazo, a restauração da saúde e bem-estar desta mesma população. Segundo este pensamento estamos portanto a passar por uma espécie de ritual colectivo de purificação (e tão doloroso que é!) que se legitima, paradoxalmente, pela promessa de um outro futuro desenvencilhado do peso da “queda”. Com um povo leviano e piegas que viveu a última década acima das suas possibilidades, uma elite política que só pensa em agradar aos seus eleitores esquecendo-se depois de que tem de pagar a factura da sua hybris, e por aí adiante.
Ora, a impopularidade deste governo não resulta do facto de tomar medidas anti-populistas que o corrente funcionamento da democracia representativa não permite em tempos “normais” – só em tempos de excepção como o que hoje vivemos com a governança paralela da troika. A impopularidade deste governo advém, ao pé da letra, da insistência dos seus representantes em cumprirem um programa que não é mobilizador em termos populares e que só é possível com uma agenda de alienamento dos cidadãos da participação na coisa pública. É este o nó górdio do famoso fosso entre governantes e governados.
A impopularidade deste governo não deriva do facto de ousar fazer cumprir medidas não populares mas que são, dentro da sua lógica, cruciais à restauração da credibilidade socioeconómica do país. Este governo é impopular, pelo contrário, porque falha a percepção popular da justiça social das suas medidas, e, para além do mais, não se vislumbram os resultados que estas prometiam - pelo contrário, há até uma regressão substancial em relação ao estado de coisas que prometiam remediar.
Em democracia não deve haver governos impopulares, as reformas a realizar devem ser trabalhadas num quadro em que se perceba a racionalidade democrática destas e o seu sentido de justiça – que, seguindo um liberalista político como John Rawls, é o valor por excelência da política. E só assim poderemos progredir em todos os âmbitos da realidade social sem deixarmos congelada a democracia em nome da saúde pública e do bem comum.


David Santos.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Duas dimensões diversas de legitimidade política

Discorre-se muito sobre a legitimidade governativa do actual governo. Pois bem, como hoje referiu o líder da bancada do PS Carlos Zorrinho, ao actual governo resta-lhe apenas uma "legitimidade burocrática" sendo que, tal deixa subentender,  que há uma dimensão da legitimidade política em que o governo de Pedro Passos Coelho já não participa ou se move para além das suas fronteiras, tanto simbólicas quanto reais. Julgando eu que essa outra legitimidade, e que não o podemos deixar de salientar, é de maior qualidade democrática do que a primeira (a burocrática, que respeita tão só aos processos institucionais, calendários eleitorais...), se depreende, como frisou Pacheco Pereira numa carta a Mário Soares (ver aqui), da cada vez mais grave "ruptura entre governantes e governados".
Assim, em seguimento a esta leitura das coisas (que distingue duas ordens diversas de legitimidade), em relação, p. ex., ao dramatismo da "suspensão democrática", apenas tenho duas leituras a fazer. Em relação ao primeiro significado de legitimidade (burocrática/institucional), é preciso não negligenciar que as instituições democráticas não foram suspensas. O parlamento continua a funcionar; a escolha dos representantes políticos por meio de eleições livres continua a vigorar e não há qualquer ameaça contra este processo; o tribunal constitucional continua a trabalhar com a autonomia desejada e as suas resoluções continuam a ser respeitadas  (com maior ou menor agrado) como espécie de imperativos incondicionais baseados nas elementares regras do jogo democrático parlamentar, etc., etc.
Já num segundo sentido, de qualidade democrática superior, há verdadeiramente uma "suspensão da democracia" sob a óptica de que o grande projecto ideológico do actual governo de  "implementar um programa de engenharia cultural, social e política, que faz dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias feitas" (outra vez seguindo Pacheco Pereira) não tem senão, se tanto, um apoio residual  das bases. Se calhar, até residual em relação aos seus próprios eleitores. Com isto, não nego qualquer projecto de transformação sócio-económica, cultural, etc., apenas creio que a legitimidade democrática de tal programa deve estar, só pode estar, fundamentada por meio da clara aquiescência das bases, pelo menos, das maiorias - e que, certamente, não é a maioria que concedeu legitimidade governativa ao programa apresentado pelo vigente primeiro-ministro à dois anos atrás. Este projecto de transformação social não pode ser, enfim, fruto de um programa e exercício tecnocratas (seja de direita ou de esquerda) mas uma transformação desejada ou trabalhada nas ou a partir das bases; deve acompanhar o próprio movimento da "sociedade civil" e confirmar-lhe o seu direito inalienável de participar politicamente nos assuntos da esfera pública. É isto que eu desejo para uma esquerda democrática e consciente, que a transformação social a ocorrer possa estar sempre justificada na própria vontade popular e não alienada desta e alinhada em interesses alheios à soberania.    

David Santos.

sábado, 25 de maio de 2013

A ruptura do novo testamento e a dialéctica entre fé e razão





Sabemos dos padres da igreja a importância da dialéctica credo ut intelligam/ intelligo ut credam, i. e, crer para poder compreender e compreender para crer,  como chave hermenêutica crucial para a compreensão da “essência do cristianismo”. E não obstante as contribuições dos doutores neste sentido, com Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária (na origem da primeira proposição) e Pedro Abelardo (na complementaridade da segunda), tentaremos esboçar uma outra hipótese, ou leitura, no sentido de também compreendermos, a montante, a justificação para o carácter terminante, na crença cristã, da inseparabilidade fundamental e dialogante entre fé e razão, fide et ratio. Para isso basearemos os nossos argumentos nas próprias sagradas escrituras, particularmente, nas primeiras páginas do Evangelho de São Mateus, e sem prejuízo da nossa ignorância nas lides teológicas.
Assim, antes de tudo mais, teremos de estar a par da ruptura radical entre o antigo e o novo testamento introduzida pelo nazareno. Não que este recuse dialogar com as leis e com os profetas do AT, bem pelo contrário, é precisamente dialogando com estes que Jesus vai revelando o que traz de infinitamente novo com a sua mensagem. Assim diz: “Ouviste o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu porém digo-vos: não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra.” E continua: “Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. E concluímos: “Na verdade, veio João [Baptista], que não come nem bebe, e dizem dele: ‘Está possesso!’ Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘ Aí está um glutão e um bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores!’ Mas a sabedoria foi justificada pelas suas próprias obras”.
A consciência do significado profundo da sua ruptura com a tradição judaica (com a outra “geração”, como Cristo lhe chega a referir-se) é tal que este não pode deixar de alertar os seus discípulos sobre a sua radicalidade, nomeadamente, com a eloquente síntese: “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada”. Interpretando nós a espada como símbolo dessa cisão fundamental que a sua mensagem acarreta face ao AT, à tradição.
Ora, onde é que esta consciência da cisão radical do NT (protagonizado pela figura de Jesus Cristo) por oposição ao AT (alicerçada nas Leis e nos Profetas) imbrica com o significado fundamental da relação capital entre fé e razão na mensagem cristã? Precisamente na nova inteligência com que o nazareno vem dotar a tradição (e, em certos momentos/diálogos, com a violência da fractura com esta) e na crença de que ele (Cristo) não é um falso profeta mas o próprio Messias que vem anunciar o reino do céus e redimir os nossos pecados. Quer dizer, Cristo, com a sua vinda, vem introduzir nos homens o fardo da própria exigência da no sentido do acreditar (ou não!) que essa nova inteligência (que funda uma outra ética) não é uma fraude destinada a corromper os homens do caminho para a salvação, mas a derradeira mensagem para a salvação. O cristianismo é uma religião de exigência (lembrando aqui, p. ex., um Kierkegaard), antes de submissão incondicional ao dogma e às autoridades seculares, porque, e outra vez Jesus: "Eu digo-vos que aqui está quem é maior que o templo".

David Santos.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago (terceira parte)


Aproveitando a deixa, o velho da venda preta relembra que na altura em que o «mal-branco» começou a alastrar, a multidão corria para os bancos na ambição de levantar todas as suas poupanças, seguindo-se uma vaga de assaltos, algumas das pessoas até ficavam nos subterrâneos a vigiar os cofres, saindo apenas para satisfazer as suas necessidades, para garantir que mais ninguém entrava chegavam a inventar palavras-passe e sinais de dedos. Descem até à rua onde residiam o médico e a mulher, mas a rua em nada se distinguia das outras já anteriormente descritas como sujas e com cegos vagueando sem destino; no entanto a mulher do médico idealizava que tudo estaria asseado, nunca pensando que a cegueira se estendesse ao entendimento. Sobem ao quinto patamar do prédio onde habitavam o médico e a esposa. Quando entram em casa pela primeira vez, depois de vários meses passados no manicómio, a mulher do médico repara que está tudo em ordem. Começa por fazer as tarefas domésticas e por tratar de acomodar todo o grupo, despiram-se todos para a mulher do médico recolher as roupas e as deixar na varanda colocando-as junto dos sapados, que já antes tinham sido recolhidos do patamar de entrada. Observando a cidade, repara em quão diferente está sem as luzes ligadas, os contornos dos edifícios são quase indistintos do alcatrão. Após este momento de reflexão, a mulher do médico volta para o interior para decidir o que irão fazer durante o período em que estiverem todos juntos; a mulher do médico salienta a importância de alguém a acompanhar nas saídas que tiver que fazer para, no caso de cegar, alguém a saiba trazer de volta a casa.
Sendo esta conversa realizada num juntar alumiado pela luz da candeia de azeite. Após a refeição, a mulher do médico explica ao rapazinho estrábico o que é uma candeia de azeite, agarrando-lhe na mão e passando-a no objeto, simultaneamente, acompanhado de uma descrição. Quando o rapazinho pergunta pela cor do objeto, a mulher do médico responde-lhe que é amarelo; foi quando o rapazinho, por um breve momento, se pôs com um ar pensativo o que levou a mulher do médico a suspeitar que o rapazito iria perguntar pela mãe, mas não, o que o rapazito acabou por perguntar foi por água. Ela lembrou-se que tinha alguma no depósito de autoclismo, mas fica ainda mais alegre quando no episódio em que está a dar a água ao rapazinho estrábico o marido ao perguntar-lhe pelas garrafas de água, ela se recorda que ainda tem dois garrafões de água pura, estando um deles a meio, foi uma alegria para todos beberem pela primeira vez, desde que foram internados, água pura.
De noite a chuva que caia violentamente, acordou a mulher do médico que tirou proveito da circunstância para pôr na rua qualquer objeto que pudesse armazenar água, aproveitou ainda para tomar banho e lavar a roupa, todo este ruído gerado pela chuva acaba por despertar as outras duas mulheres que depressa prestaram auxílio à mulher do médico. Após as três tomarem banho, foi a vez dos homens. Sendo o velho da venda preta o primeiro a lavar-se dentro da banheira, a meio do banho, sente que alguém lhe está a passar as costas, pensou que fosse a mulher do médico, ou a do primeiro cego, ou a rapariga dos óculos escuros, enquanto isso as mãos acabaram a sua obra, a razão pareci-lhe dizer que fora a mulher do médico pois é a única que ainda possui os cinco sentidos e que tem cuidado de todos aqueles que estão em casa, mas o palpite é desfalcado ao entrar na sala de estar quando a mulher do médico afirmou que foi uma pena ele não ter lavado as costas.
Nessa manhã, saem a mulher do médico, a mulher do primeiro cego e o primeiro cego, para procurar comida e para ver se a casa destes já tinha sido ocupada. Pelo caminho, a mulher do médico procura por lojas onde possa reabastecer. Vão seguindo para a casa do primeiro cego, chegam ao prédio onde este mora, a mulher do médico pergunta ao primeiro cego qual o andar em que moram, este responde-lhe que vive no terceiro. Ao baterem na porta aparece um homem que lhes pergunta quem e quantos são, ao que o primeiro cego diz que é o proprietário do imóvel e que vem acompanhado da mulher e de uma amiga do casal; este misterioso homem deixa-os entrar e revela-lhes que é escritor. A mulher do primeiro cego pergunta ao escritor qual é o seu nome, este diz que isso já não importa e que não era o único que estava a viver em casa, haviam ainda a mulher e as duas filhas que tinham ido à procura de comida. Ele simplesmente estava ocupar a casa porque já outros cegos se tinham apossado da sua, e é isto que se passa, regra geral, na cidade. O que ele propõe ao primeiro cego é que deixa as coisas consoante estão, e quando encontrar a sua casa vazia mudar-se-á imediatamente para lá e da mesma forma deverá proceder o primeiro cego. Entre os diversos assuntos que foram levantados, um deles foi o tempo de quarentena, o fato de a mulher do médico nunca ter perdido a visão, e de o grupo da mulher do médico ter saído do sanatório à três dias; o escritor diz-lhes que consegue ainda escrever, entretanto leva-os ao local onde costuma escrever, aí encontrava-se uma mesa com algumas folhas escritas, outras em branco, e no meio uma folha quase preenchida, um candeeiro e duas esferográficas.
Terminada a visita, os três voltam para casa do médico carregados com alimentos para os próximos três dias. À noite a mulher do médico lê um livro que retirou da biblioteca.
Passados dois dias o médico sente curiosidade em saber como andará o seu consultório, a sua mulher disse-lhe que não se importava de lá ir, a rapariga dos óculos escuros disse que gostaria de aproveitar a viagem para saber como estava o seu apartamento. Os três elementos entram no consultório do médico, os arquivos apresentavam sinais de terem sido revolvidos quanto ao restante estava tudo em ordem. Seguem para a casa da rapariga dos óculos escuros. À entrada do prédio da rapariga dos óculos escuros estava o cadáver da vizinha do primeiro andar com umas chaves na mão, a mulher do médico recolheu-as e entregou-as à rapariga dos óculos escuros; agarram no corpo da velha para o enterrar no quintal do prédio. Depois de enterrada a velha do primeiro andar; a rapariga dos óculos escuros pensa em deixar um sinal de que está viva, para o caso dos pais voltarem para casa, a mulher do médico sobe ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas escadas de salvação abrindo a porta com as chaves que estavam na mão da venha, vai buscar uma tesoura e um cordel, corta uma madeixa de cabelo da rapariga dos óculos escuros para a pendurar no puxador da porta. Voltam outra vez para casa do médico onde, novamente, houve uma secção de leitura e audição, em que no final se estabelece uma conversa entre a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta, sobre as suas esperanças de voltarem a ver, no meio da conversa os dois acabam por declarar que gostam um do outro, descobrindo- -se assim, quem lavou as costas ao velho naquela manhã chuvosa.
No dia seguinte, a mulher e o médico vão ao subterrâneo do supermercado para se abastecerem com comida. Chegados ao supermercado, a primeira coisa que a mulher do médico nota é que não entra nem sai ninguém do supermercado, ao entrar ela apercebe-se do cheiro a putrefação e que se intensifica à medida que avançam em direção à cave, na altura em que a mulher do médico seu interior da cave o cheiro é ainda mais nauseabundo, quando chega ao fundo das escadas repara nos cadáveres que ali estavam amontoados; o marido ouve os vómitos, os arrancos e a tosse, acompanhados pelo uivo do cão das lágrimas, e que o move a descer as escadas à procura da mulher. Ele guia-a até à saída da cave e ela conta-lhe o que viu, e que se sente culpada por ter dado a entender aos cegos que ainda havia comida nalguma zona do supermercado, no momento em que saiu do estabelecimento com os sacos da comida.
A mulher mal se podia arrastar quando saíram do supermercado, não era de estranhar pois ainda continuavam com os sacos vazios, do outro lado da rua estava uma igreja onde ela pensou ser um bom sítio para ela descansar, o marido vai amparando-a, com o interior da igreja a abarrotar era difícil encontrar local onde a mulher pudesse repousar, o cão das lágrimas com os seus rosnidos consegue arranjar espaço onde a mulher pudesse deitar-se, mas o marido ajuda-a para que se sente, aos poucos ela lá consegue melhorar. Começa a olhar para as imagens e esculturas dos santos, mas algo lhe prende a atenção, os santos estavam vendados com vendas brancas e as imagens com os olhos pintados de branco; quando ela disse que os santos estavam vendados com vendas brancas a uma cega, estando os outros a ouvir, foi o pânico geral, toda a gente saiu. Os únicos que ficaram foi o cão das lágrimas que começou a farejar à cata de comida, a mulher e o médico que conseguiram encher os sacos até a meio.
Chegados a casa fazem o relato aos restantes companheiros, a mulher do médico sobrelevou que estava cada vez mais difícil de encontrar comida que talvez devessem ir viver para o campo, onde seria mais fácil obter alimento. À noite, como se tinha tornado usual, seguiu-se uma secção de leitura. Durante a secção o primeiro cego adormece, nos seus pensamentos a ideia de abandonar a cidade, e com isso a sua casa, para ir viver para o campo parecia-lhe um erro. Algo de perplexo se passa, começa a ver tudo negro, pensa que terá passado de um estado de cegueira para outro, este pavor da treva fá-lo gemer; o que chama a atenção da esposa, o que ele lhe responde que está cego, ela para o consolar dá-lhe um abraço e diz-lhe para voltar a dormir. O que o deixa irritado, começa a abrir os olhos e descobre que vê e grita a sua descoberta, movido pelo furor começa a abraçar todos os que se encontravam na sala, o médico começa a pensar que talvez este «mal-branco» esteja próximo do fim; este acontecimento tornou-se tema de conversa durante as horas que se seguiram. Já noite alta, a segunda pessoa a recuperar a vista é a rapariga dos óculos escuros, observou a quem tinha feito promessas de uma vida a dois durante o seu estado de cegueira, e dá-lhe um abraço como se o acordo ainda estivesse de pé; o terceiro a recuperar a vista, já durante as primeiras horas da manhã, é o médico. Os restantes era apenas uma questão de tempo até recuperarem a visão. Na conversa que se estabelece entre a mulher do médico e o marido a respeito do velho da venda preta, o médico termina com esta observação: que talvez não tivessem ficado cegos e que naquele preciso momento eram cegos que vêem. Depois disto, o médico foi à janela assistir as pessoas que gritavam e cantavam por terem recuperado a visão.
Finalizando este nosso resumo. Fazendo uma interligação entre alguns dos espaços da obra (sanatório, supermercado e igreja); não será o supermercado a catedral dos nossos dias, onde o fideísmo pelo consumo chega à demência? Por acaso, não será o episódio de vendar e pintar as imagens dos santos uma expressão de uma sociedade desprovida de valores morais? E não será este episódio também uma forma de moldar os deuses e santos à nossa imagem? Avançando, também não será simbólico quando em tempos de dificuldade as pessoas recorrerem à igreja, como os cegos que estavam deitados no seu interior? Não seremos nós cegos que não querem enxergar a sua condição de ser intrínseco à natureza, mesmo estando as nossas necessidades básicas a alertar-nos para isso?
  Fernando de Almeida.

sábado, 20 de abril de 2013

Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago (Segunda parte)


Quando finalizados os bens para a permuta, o bando impôs que a comida fosse trocada pelo deleite sexual; o que causou a indignação da maioria das mulheres e do seu protesto contra tal prática. Há apenas uma que aceita de imediato a proposta dos bandidos, desde que tenha comida e cama. Os homens que partilhavam a camarata com elas, procuraram convencê-las a aceitar a dita troca. Nesse instante, há uma mulher que se volta para um homem e pergunta-lhe solenemente diante de todos: “E se eles em vez de mulheres quisessem homens para terem sexo? Seriam vocês capazes de aceitar?” O homem, muito espantado, respondeu que se fosse esse o caso aceitaria. Elas acalmaram--se, e rogadas lá foram seguindo os capatazes do grupo que as levaram até ao terceiro esquerdo do corredor, durante o caminho a mulher do médico espreita para dentro das camaratas dentro das quais haviam mulheres que gritavam cada vez que um homem lhes tocava, quando elas chegam à camarata o porteiro avisa de imediato a sua chegada. O chefe do bando escolheu aquela que mais lhe agradava para satisfazer a sua concupiscência, à medida que o tempo ia passando o cenário ia-se transformando em bacanal e de violência desenfreada em que as mulheres davam espasmos de dor, uma delas chega a morrer logo depois da orgia, no outro dia de manhã, em que todas voltavam para as suas camaratas com a comida. De manhã, voltam outra vez os mensageiros à procura de novas mulheres, pelo percurso, passam pela camarata da mulher do médico. Os três criticavam a mulher das insónias, desdenhavam-lhe o corpo, que o corpo dela não valia nada, um deles pergunta o que é feito dela; ao que a mulher do médico retruca em tom provocatório, com a intenção de lhes causar algum remorso, que ela não valia nada e, consequentemente, que a pergunta nem sequer merecia ser colocada.
Esta chantagem dos cegos malvados causa na mulher do médico o desejo de querer pôr cobro a tudo isto. Ela olha para a parede da sua camarata onde tinha pendurado a tesoura que encontrou na sua mala, pensando em usa-la como um punhal, agarra-a e vai até à camarata onde estavam os cegos malvados, procurando sempre passar despercebida no meio deles. Direcciona-se para o chefe dos bandidos que estava a ter relações sexuais, coloca-se atrás do chefe e aponta-lhe a tesoura ao pescoço no qual iria desferir o golpe mortal, o sangue esguicha e salpica a cara da mulher que prestava o serviço ao chefe do bando, a rapariga emite um grito com tal intensidade que põe todo o grupo em alvoroço. As mulheres entram em rodopio procurando uma saída do quarto; a mulher do médico agarra a dita mulher e tapa-lhe a boca para evitar que ela continue a gritar e para sair dali de forma segura, depois reúne as mulheres que ali se encontravam e leva-as em fila indiana até às outras camaratas. Atrás delas, à porta da camarata dos bandidos, estava o contabilista dando tiros para o tecto que gritou que as refeições iriam deixar de ser distribuídas, dando a entender que era ele agora quem dava as ordens.
A necessidade de alimento compele os cegos a magicar um plano para o conseguir. O primeiro a falar é o velho da venda preta que propõe que se devia denunciar a culpada pela morte do chefe do bando de malfeitores, talvez o bando dos bandidos os perdoasse e lhes entregassem comida; o segundo homem, o ajudante de farmácia, diz que todos se deviam unir para entrar à força na camarata dos bandidos; por último, o médico diz que todos deviam aguardar até à hora de entrega das refeições pelos militares e que não deviam atacar o bando por enquanto, porque estavam armados. Todos esperaram até à hora da refeição, contudo os militares nunca mais chegaram com a comida e ainda continuaram à espera, só depois de passadas algumas horas é que decidiram atuar. Os cegos organizam-se e planeiam a forma como devem entrar na camarata dos bandidos, armam-se com os ferros das camas, mandam a mulher do médico ir ver se os bandidos tinham barrado a entrada com as camas; a mulher do médico vai à camarata dos bandidos para verificar se estes tinham alguma coisa a tapar a entrada, e de facto a suspeita confirmou-se da pior forma, os bandidos tinham colocado duas filas de camas a tapar a entrada; volta novamente à camarata para contar aos companheiros o que tinha visto. Conta-lhes que não é possível entrar na camarata dos bandidos sem serem detetados, e de que as hipóteses de sair daquela camarata com vida eram escassas. Mesmo assim, os cegos tentam forçar a entrada, do interior da camarata saem dois disparos que acabam por levar a vida de dois homens, um deles farmacêutico. No desejo de entrar naquela camarata houve uma mulher que pensou que a melhor hipótese seria deitar fogo às camas com o intento de obrigar os bandidos a sair da sua toca, e assim fez, agarrou num isqueiro e foi até à entrada da camarata dos bandidos, começou por pegar fogo na parte lateral das camas. Um pensamento invadiu de imediato a cabeça da mulher: «e se os bandidos têm um balde e apagam o fogo», meteu-se debaixo das camas e passou o isqueiro a todo o comprimento das mesmas, mas depressa o fogo lambeu-lhe os cabelos e ela tornou-se numa pira. Dentro da camarata, os cegos malvados estavam em pânico que lhes era animado pelo cheiro a fumo e pelo calor estonteante. Sentem as labaredas a aproximar-se, começam a subir para cima dos móveis para conseguir alívio, mas acabam por servir de alimento às chamas. Aqueles que estavam no corredor à espera para lhes atacar, ouvem os uivos daqueles que ardiam, depressa entendem que têm de sair dali. Vão para o exterior do manicómio, ajudados pela mulher do médico. Já no exterior, a mulher do médico observa que os soldados já lá não estão para os vigiar; a mulher observa agora o manicómio a arder, era a única fonte de calor e de luz que rompia com aquela noite gélida, exausta senta-se no chão tal como todos os outros, aconchegados pelo calor proveniente do manicómio acabam por dormir. De manhã saem do perímetro de segurança que tinha sido montado pelos soldados, combinam para qual das casas é que devem ir. Chegam a acordo, a primeira casa para onde eles tencionam ir é da rapariga dos óculos escuros e a segunda é a casa do velho de venda preta, partindo daqui a restante ordem de casas a visitar: a da mulher do médico, a do rapazinho estrábico e a do primeiro cego. Apesar de tudo, como o velho da venda preta apenas tinha o quarto alugado e o rapazinho estrábico não se lembrava onde morava, limitaram-se, portanto, a seguir os restantes.
Dirigem-se para o centro da cidade e deparam-se com um cenário desolador, com casas e lojas pilhadas, com ruas sujas de tudo aquilo que se possa imaginar de nojento. As pessoas que estavam na rua procuravam desesperadamente algo que lhes possa encher o estômago. Vêem um grupo a sair de uma loja, a mulher do médico vai falar com alguém desse grupo; um dos elementos do dito grupo transmite-lhe que a doença se propagou de um grupo de pessoas para depois se estender a todo o país. Aqueles soldados que guardavam o manicómio foram os últimos a serem vitimados pelo «mal branco». Além disso, a cidade já não é abastecida com alimento e outros bens essenciais desde que a doença se alastrou. Desde modo, as pessoas sentido falta de alimento começaram a alimentar-se dos seus animais domésticos, depois começaram a alimentar-se dos cães vadios mas depressa estes aprenderam a evitar as pessoas, havia também grupos de cães raivosos que atacavam as pessoas. E ainda havia pessoas que se alimentavam de cadáveres, humanos ou não, tal como faziam os cães. Pelo motivo de escassez de alimento o grupo que estava no interior da loja decide ir à procura de alimento nas cidades mais próximas; despedem-se.
A mulher do médico e o resto do seu séquito entram dentro da loja de eletrodomésticos, ela diz-lhes que aguardem por ela no interior da loja enquanto vai buscar alimento. A mulher sai da loja e deambula pela cidade à procura de um supermercado ou de alguma loja que ainda tenha uma réstia de algo que se coma. Finalmente, chegada ao supermercado a mulher do médico vê, no interior da superfície comercial, os cegos a andarem por entre as prateleiras à procura de alimento, chegavam a derrubar estantes, a andar de gatas, enfim, tudo o que uma mistura de cegueira e fome lhes possa obrigar a fazer na busca desesperada por alimento. A mulher do médico deu rapidamente com o local onde os alimentos estavam armazenados, ou seja, a cave do supermercado, abriu a porta devagar, observou, foi buscar sacos e entrou para encher os sacos que tinha na mão com todos os alimentos e objetos que queria, comeu ainda um chouriço para recobrar forças para a sua empresa, depois de saciar a fome ela saiu da cave e fechou a porta, com a intenção de mais tarde ali voltar. Olhou para a saída do supermercado, procurou chegar até lá pé ante pé contornando os cegos; quando há um cego, que a meio do caminho, sente um bafo forte a chouriço e grita que alguém estava a comer chouriço; nisto, a mulher do médico mete as iguarias atrás das costas e lança-se numa correria em direção à porta de saída do supermercado. No caminho de regresso, passa por diversos cegos com a cara apontada para o céu e de boca aberta para receber a chuva, alguns com baldes e tachos para armazenar água; e por viaturas estacionadas de forma caótica. Enquanto caminha de regresso a casa, a mulher do médico procura saber por onde é que veio, começa a ficar cada vez mais desesperada pois acredita que se perdeu, senta-se e desata a chorar, nesse momento, um cão aproxima-se dela; ela afaga- -o e começa a lacrimejar para cima do animal. Para sua grande sorte, ela repara que há ali, à sua frente, um mapa da cidade; chegou-se para junto do mapa e procurou qual era a rua onde estava situada e a loja de electrodomésticos onde os seus amigos estavam. Seguiu pelo caminho que estava indicado no mapa até à loja, o cão limitou-se a segui-la para todo o lado.
Quando chegou ao estabelecimento, começa por distribuir comida ao grupo, narrou-lhes o que se tinha passado no supermercado, rindo-se todos do infortúnio do cego que tinha espetado o vidro no joelho, chegando a dar alguma comida que trazia no saco ao cão que devorou tudo o que ela lhe entregou. Depois do repasto, o grupo saiu da loja com o objetivo de procurar vestuário e calçado, após isto, seguiram para o apartamento da rapariga dos óculos escuros. Chegam ao prédio onde vivia a rapariga, a mulher do médico juntamente com a rapariga dos óculos escuros sobem ao segundo apartamento, mas não estava ninguém para abrir a porta. As duas procuram nos restantes apartamentos e nada, até que no primeiro piso encontram uma vizinha, que lhes abre a porta, denotando-se um cheiro putrefacto que vinha do interior do apartamento, a mulher põe as duas a par do que se passou com os pais e restantes vizinhos após terem levado a rapariga de óculos escuros para o manicómio abandonado, revelando-lhes que vivia da comida que estava armazenada dentro das casas e daquilo que o quintal dos fundos do prédio produzia. A vizinha (idosa e de cabelos desgrenhados) ofereceu passagem às duas para irem ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas escadas de salvação, mas avisa-as de que já não existe comida nos restantes apartamentos, a mulher do médico responde-lhe que trazem comida, nessa altura, a velha, em troca do favor, pede-lhes alguma comida. As duas entram no apartamento, e o cheiro intensifica-se cada vez mais à medida que avançam no interior da habitação, atingindo o seu auge na cozinha onde estavam coelhos esfolados, além de restos de comida; saem pelos fundos e sobem ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas escadas de salvação.
Entraram no apartamento da rapariga de óculos escuros pela porta das traseiras que se encontrava aberta, já a respetiva chave encontrava-se na posse da velha; mas, para grande felicidade das duas mulheres, as chaves da porta de entrada ainda estavam penduradas na fechadura, não sendo necessário pedir à velha para deixar passar todo o grupo, evitando dessa forma o seu mau humor. A mulher do médico foi chamar o grupo que era seguido pelo cão (chamado pelo narrador o cão das lágrimas), o barulho do tropel leva a vizinha do primeiro andar a abrir a porta e a perguntar quem vinha, a rapariga de óculos escuros responde-lhe que eram os restantes elementos do seu grupo, nesse momento, a velha relembra-lhes que lhe tinham de lhe dar de comida, e foi aí que o cão das lágrimas ladrou ferozmente à velha que se recolheu assustada com o cão. Assim que todos entraram dentro do apartamento, antes de jantarem, a rapariga de óculos escuros e a mulher do médico foram ao andar de baixo cumprir o compromisso; nessa altura a velha entrega a chave dos fundos à rapariga de óculos escuros. A seguir ao repasto, a rapariga de óculos escuros e a mulher do médico conversam, a primeira disse que tinha intenções de ficar no apartamento, já a segunda alerta-a para a competição pelo alimento com a vizinha de baixo além da hipótese de adquirir os hábitos da mesma, como comer carne crua e da casa parecer uma pocilga, mas a rapariga de óculos escuros encara isso como inevitável assim que se perdeu a visão e que sem este dom é como se estivesse morta. Nesse sentido, a mulher do médico diz-lhe que devido à cegueira os sentimentos tenham mudado, pois os sentimentos são construídos em grande parte pela visão; por este motivo, sugere-lhe que venha com o resto do grupo até à casa do médico.
Na manhã seguinte, trataram desde logo de satisfazer as suas necessidades fisiológicas e de higiene ao ar livre. Depois de todos estarem satisfeitos, foram para a mesa para decidir o que fazer, o que a mulher do médico propõe ao grupo é de que continuem a viver juntos, antes de saírem recomenda à rapariga de óculos escuros que deixe as chaves com a vizinha do primeiro andar em troca do favor entregava-lhe ainda mais alimento, posteriormente o grupo seguiu caminho para a casa do médico. A mulher do médico ia à frente do grupo, quando saem do prédio colocam-se ao lado uns dos outros e seguem de mãos dadas e entrançados com uma tira de pano até à casa do médico. Pelo caminho por um luxuoso bairro, cuja riqueza se espelha nas viaturas que estão estacionadas diante das vivendas, uma delas uma limousine estacionada à porta de um banco. A pessoa a quem servia, o presidente do conselho de administração, que ficou preso no elevador juntamente com o ascensor por causa de uma falha de energia provocada pela paragem do gerador que ainda não era automático, que por isso necessitava dos eletricistas para o manter a funcionar, mas que por motivos do mal branco não o puderam fazer.
   
Fernando de Almeida