quinta-feira, 27 de junho de 2013

Júlio Dantas, 1023

Júlio Dantas nasceu no conselho de Lagos em 1876, desempenhou diversas funções ao longo dos seus 86 anos, tais como: médico, político, diplomata e escritor. Nesta última atividade, damos destaque à sua vasta poligrafia que se estende desde a poesia até ao jornalismo, no entanto foi o teatro que lhe granjeou mais fama, sendo a peça A Ceia dos Cardeais (1902) a mais conhecida. Ainda dentro desta ocupação, Dantas foi eleito sócio da Academia de Ciências de Lisboa (1908). Era considerado retrógrado por alguns intelectuais da época, como Almada Negreiros que o expõe ao ridículo com o Manifesto Anti-Dantas. Júlio Dantas veio a falecer em Lisboa em 1962.
Lançou a sua carreira como jornalista no jornal Novidades em 1893. De entre as suas melhores obras constam Paços de Vieiros (1903) e Reposteiro Verde (1921) de pendor claramente naturalista[1]; contudo nas suas peças teatrais segue uma tendência que se situa entre romantismo[2] e o parnasianismo[3]; já nas novelas tem por preferência temas históricos. De uma forma planetária, defende nas suas obras o culto do heroísmo, da elegância e do amor, situando a trama das suas obras de forma quase incontornável no século XVIII, para demonstrar o degenerar da aristocracia dessa época. Outras temáticas que estão igualmente presentes nas suas obras são a exaltação do efémero, da morte e do sentimentalismo lancinante. O seu trabalho poético é nitidamente inspirado na lírica palaciana de Garcia de Resende presente no Cancioneiro Geral.
Além das obras já mencionadas, denominamos ainda algumas outras tais como: Nada (1896) e Sonetos (1916), na poesia; no teatro O Que Morreu de Amor (1899), Viriato Trágico (1900) e A Severa (1901)[4] ; na prosa temos Outros Tempos (1909), Pátria Portuguesa (1914) e Marcha Triunfal (1954), finalizando com as traduções Rei Lear (William Shakespeare), Cyrano de Bergerac (Edmond Rostand) e O Azougue (Paul Saumière).
A obra que hoje vai servir de análise é a peça teatral 1023 escrita em verso que foi representada pela primeira vez, em março de 1914, no teatro a República, em Lisboa. Que conta com a interação entre cinco personagens (um cauteleiro, um carteiro, um sujeito que lê, uma bonne e uma criança); destas, o cauteleiro e o carteiro desempenham o papel principal. Decorrendo a ação num jardim público em Lisboa.
A história entre estas duas personagens principais começa quando o cauteleiro pergunta afetuosamente ao ti’ Romão (carteiro) se quer uma cautela. Sendo que o dialogo que se estabelece entre eles se centra no motivo pelo qual o cauteleiro deixou a sua profissão de carteiro. O motivo apresentado pelo cauteleiro foi uma mulher, de seu nome Rosa, uma engomadeira (airosa, de pele formosa, que vivia com o irmão que ainda era pequeno, pobre e alegre) que a cada oito dias recebia uma carta provinda do Rio, no Brasil, provavelmente de amores.
O cauteleiro revela que até chegou a pregar uma travessura à rapariga, dizendo-  -lhe que ainda não tinha chegado a carta, temendo que ela desmaiasse entregou-lhe a carta deixando-a em êxtase. Porém, um dia, a carta não chegou, o que lhe passou pela cabeça foi o de dar uma mentira piedosa à rapariga que seria a chegada atrasada da embarcação Avon que trazia as cartas. Passados 15 dias o então carteiro começa a estranhar a ausência da pequena engomadeira; perguntou a uma das vizinhas o que era feito da Rosa, ao que uma vizinha lhe responde que Rosa se encontrava doente; o carteiro vai-se embora para finalizar a sua distribuição. Só passadas duas semanas, após este episódio, é que volta a receber a carta provinda do Rio, numa quarta-feira, o deixou o carteiro feliz como se fosse levar a salvação, melhor, a vida à Rosinha. Mas quando chegou à morada, ela não estava lá para lhe abrir a porta, voltou a ir perguntar às vizinhas do piso inferior o que era feito da engomadeira; as vizinhas responderam que a Rosinha tinha morrido de desgosto por causa de o namorado a ter deixado, de que havia boatos de que ela o andava a trair. O carteiro foi cumprir a sua missão de levar a última carta à última morada da sua destinatária, no cemitério dos prazeres. Chegado à campa, abriu a carta e leu o seu conteúdo, que era o seguinte: um pedido de desculpa por ter acreditado num falso boato de que ela lhe era infiel e de que vinha a Portugal para se casar com a amada. Terminada a leitura, o carteiro num gesto simbólico deixa a carta em cima da campa junto ao coração. Um par de horas depois, pede a demissão.
E foi por esta razão que veio para cauteleiro, para vender a sorte, mas à seis meses que não a vendia, até ao presente dia em que o carteiro lhe compra o número da sorte, contudo a emoção de ter ganho foi tão avassaladora que o carteiro Romão acaba por se finar, o que deixa o cauteleiro em choque, os transeuntes convergem para o local por mera curiosidade. Terminando a peça com a frase do cauteleiro de que era a primeira vez que entregava a sorte grande.
Concluindo, o episódio que aqui descrevemos aparentemente dá grande importância às coisas simples e banais da nossa vida: como o amor, a sorte, a tristeza e a alegria; mas não são estas banalidades as coisas mais importantes da nossa vida? Na analepse narrada pelo cauteleiro demarca-se um certo amor platónico pela Rosinha, mas este tipo de amor também não é comum a todos nós? Mas antes disto, o que é o amor platónico?

Bibliografia:

Azevedo, S. & Guimarães, F. (1999), “PARNASIANISMO” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. III, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 1411-1418.

Baptista, T. (2008), A Invenção do Cinema Português, Lisboa: Tinta-da-China, p.p. 32-35.  

Brayner, S. & Reis, C. (1999), “NATURALISMO” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. III, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 1045-1053.

Chorão, J. (1997), “DANTAS (Júlio)” in AAVV, Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. II, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 5-6.

Monteiro, O. & Ribeiro, M. (2001), “ROMANTISMO” in AAVV            , Biblos: Enci-clopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa vol. IV, Lisboa: Editora Verbo, p.p. 963-986.

Ribeiro, F. (1983), Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português: 1896-1949, Lisboa: Cinemateca Portuguesa, p.p. 279-292.

S. a., Júlio Dantas, s. d. , retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BAlio_Dantas em 17 de Abril de 2013.



    



 




[1] Corrente anti-idealista e anti-romântica que se situa em princípios dos anos 60 do século XIX, com uma função crítica e reformista seguindo uma matriz positivista muito centrada que acredita que as leis naturais comandam os comportamentos humanos e a sociedade, e que tem como fundamento o determinismo da hereditariedade, do meio e da educação. Cabe, então, ao autor o estudo do meio, das ideias que circulam nesse espaço geográfico, a hereditariedade, etc.   (Brayner & Reis, 1999).
[2]Esta corrente foi introduzida na cultura europeia no princípio do século XVIII e que perdura até praticamente ao seu final. Desenvolve como temática o espírito humano (a disposição dionisíaca que coabita com a imaginação e a sensibilidade que predominam sobre a razão) em que o disforme da exposição estética tem como contrapeso o classicismo. Sendo fortemente influenciada pelo contexto sociocultural, que se estendeu a diversas áreas tais como: filosofia, arte e literatura. Em que o autor segue uma filosofia espiritualista do «eu» (auto-afirmação, exaltação sentimental, religiosidade vaga, o desconsolo e a frustração), que é alimentada pela agrura da condição humana, a tensão entre a futilidade e crueldade social com a índole de liberdade que só podem ser preenchidas no sonho ou na morte, a qual possibilita ao autor pluridividido recuperar a sua unicidade já despojado das máscaras sociais (Monteiro & Ribeiro, 2001).  
[3] Corrente literária presente a partir do século XIX como uma reação ao romantismo. Tendo como caracter a beleza formal, os temas exóticos e pictóricos servidos numa poesia ou narrativa de forma descritiva (Azevedo & Guimarães, 1999).   
[4] A título de curiosidade, foi a sua obra teatral A Severa, de Júlio Dantas, que inspirou o realizador José Leitão de Barros a produzir o primeiro fonofilme português, em 1931, exatamente com o mesmo título (Baptista, 2008 & Ribeiro, 1983).       

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