terça-feira, 27 de novembro de 2012

Crítica da crítica da crítica




Vivemos acima das nossas possibilidades. A frase é repetida até à exaustão, não apenas pelo governo - que procura, desta forma, legitimar retoricamente os motivos para a sua austeridade -, como por determinados arautos, concubinos e outros comentadores da comunicação social (os opinion makers à portuguesa), como ainda por personalidades como a Isabel Jonet e outros membros eclesiásticos. O que estes ainda não se deram ao trabalho de fazer foi de analisar, do ponto vista formal, lógico, a frase em questão; se se tivessem dado a esse trabalho decerto perceberiam que a proposição que defendem só tem, ou só ganha sentido, por meio do enviesamento ideológico que encobrem.
Ora vejamos, não é viver acima das possibilidades viver o impossível? Por seu turno, viver o impossível é manifestamente impossível, logo, o sentido desta asserção não pode estar contido na frase em si, isto é, considerada isoladamente. Portanto, para podermos compreender o que pretendem significar os que dela fazem, até à náusea, uso, teremos de adentrar, por sua vez, na conceção que estes fazem da realidade que pretendem designar.
É que, de facto, se vivemos até agora como vivemos – acima das nossas possibilidades, como insistem alguns e que não são poucos! - é porque o sistema socioeconómico, mais que o permitiu, o possibilitou, isto é, tornou possível. Agora, vem à boca a questão, por que é que, hoje, já não é possível continuarmos a viver como anteriormente? Como se justifica esta regressão ou “arrefecimento” das condições de vida gerais, que, permitiram, p. ex., a emergência de uma classe média massificada e o Estado Social que tivemos até agora e que hoje está sob ameaça patente? O que vem interromper esse estado de coisas? Se o trabalho social, a produção mundial, com a UE à cabeça, explorada sob a égide capitalista, tornou possível, até este momento de regressão, o nível de vida que tivemos, qual o fator, ou conjunto de fatores, que vêm agora inviabilizar esta realidade?
O que pretendo chamar a atenção é para o facto de a possibilidade de termos tido as condições de vida que até este momento tivemos, não é uma possibilidade do sistema capitalista financeiro mas, antes, e ainda que este primeiro o queria obliterar nomeadamente com a preservação da cisão/relação credor/devedor, do trabalho social. A UE, com todos os seus recursos (tanto naturais como humanos), com a sua capacidade de produção, não precisa que seja o sistema bancário (enquanto linha da frente do sistema financeiro mundial) a fazer parte significativa da distribuição dessa riqueza sob a forma de créditos, isto é, de dívida. A UE, com os recursos e mecanismos que possui, não precisa desta crise. O que está em jogo é a urgência de uma nova racionalidade que possa gerir o binómio produção/distribuição, preservando o enquadramento institucional da UE (enquanto unidade supranacional), sem que as relações - detentores dos meios de produção/detentores da força de trabalho - ou - credores/devedores - se convertam em relações de poder consolidadas e impossibilitem uma distribuição justa do produto global dessa unidade supranacional.
David Santos.

domingo, 25 de novembro de 2012

Lógica, Immanuel Kant (terceira parte)



Continuando o nosso passeio, ainda dentro do horizonte de conhecimento do sujeito, temos um saber que é absoluto e universal – em que os limites do conhecimento humano estão em sintonia com os limites da perfeição humana em geral – ou um saber que é particular e condicionado – que pertence ao horizonte do privado e que está limitado às próprias faculdades inteletuais do sujeito. Isto conduz-nos a diferentes tipos de conhecimentos, que iremos começar desde já a ilustrar: o saber histórico sem quaisquer limites (poli-história) e o conhecimento racional (polimatia). Do alinhar destes dois saberes resulta a pansofia. Por outro lado, o saber histórico comporta em si a ciência dos instrumentos de erudição – a filologia, que é o conhecimento crítico que se debruça na literatura e linguística. E é daqui que surge o literato ou bel spirit que se interessa pelos conhecimentos do gosto que estão de acordo com a moda.
Quanto às ciências, temos o pedantismo e o enfantramento. Enquanto a primeira se ocupa das ciências de escola, restringindo-as no que respeita ao seu uso, o segundo trata de lhe dar uma utilidade pragmática, limitando o conteúdo. Surgindo duas grandezas: a grandeza intensa [que contempla a validade e importância], e a grandeza extensiva [que diz respeito à vastidão, aqui convêm fazermos a seguintes observações: a) o uso do entendimento foca-se no todo e não nas partes; b) no plano lógico, dominar todo o conhecimento que suscite a perfeição lógica quanto à forma. Embora não seja possível prever a sua importância prática quanto à especificidade, mas é possível esperar que exista alguma utilidade; c) não confundir importância com dificuldade, pois um conhecimento pode ser importante sem ser obrigatoriamente difícil. A importância de um conhecimento é justificada pela vastidão das suas consequências. Porém, se as consequências tiverem pouco relevo, então, obtivemos um mero devaneio de conhecimento.
Outro assunto, também ele de interesse, é a verdade. O que é a verdade, perguntam vocês? Seguindo o caminho trilhado pelo filósofo em análise, a verdade consiste no acordo do conhecimento com o seu objeto, consequentemente, o sujeito só pode comparar o objeto porque o conhece, daí segue-se que, o conhecimento acerca de um objeto necessita de auto-confirmar-se. Seguindo um critério formal de verdade que consiste exatamente nesta coerência do conhecimento consigo mesmo, o         qual está imbuído de três princípios de verdade: a) princípio da contradição e da identidade; b) o princípio da razão suficiente; e c) o princípio do terceiro excluído. Já o seu antagónico, a falsidade, se for tomado como verdade chama-se erro. E que pode ter como origem uma segunda fonte de conhecimento, que é a sensibilidade que nos fornece o material que constitui a matéria do nosso pensamento e que se desenvolve segundo leis diferentes das do entendimento e que, por vezes, nos pode levar a confundir aparência com a própria verdade. Deste modo, para evitar tais erros à que identificar essa aparência, que pode ser clarificada com o juízo de outros, claro que se existir diferendo, então, temos indício de erro.
E daqui surgem duas regras: a primeira, é a verdade da consequência, pois a consequência é determinada pelo seu princípio, que é o conhecimento; a segunda, que consiste no seu contrário, que se as consequências são verdadeiras, logo o conhecimento é verdadeiro. Por outro lado, esta influência da sensibilidade leva-nos a tomar por objetivo algo que é subjetivo e que tem apenas aparência de verdade. Para que se evite tal malfeito, o autor recomenda as seguintes precauções: 1) pensamento próprio (modo de pensar ilustrado); 2) pensar na posição do outro (modo de pensar alargado), e; 3) pensar em acordo consigo mesmo (modo de pensar consequente).
Concluindo, verificamos que o pedantismo se ocupa das ciências da escola, por seu lado, o enfatramento procura dar uma utilidade pragmática a essas ciências. Segundo ponto visa a verdade como conhecimento que se identifica com o seu objeto e que se auto-confirma; à verdade seguem-se os seus critérios formais, inspirados nos critérios aristotélicos e a regra de princípios - consequência; além das preocupações relativas à sensibilidade, uma vez que ela nos pode conduzir ao erro.  

Fernando de Almeida.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

The Visitor - um filme sobre ética da globalização



The Visitor (Thomas McCarthy, 2007) é um filme sobre ética da/na globalização. Uma ética que se desenvolve para além dos simples limites do cosmopolitismo, para além da tolerância ociosa e estéril, do baço verniz das convenções, de um multiculturalismo sem multiculturalidade, da hegemonização das formalidades em detrimento da pulsão da alteridade, para além da burocratização, esse universal mecânico, frouxo, não criador.
The Visitor narra a história de um professor universitário de economia que não se reconhece na sua profissão, nas suas habituais funções, no seu vivido quotidiano, naquelas que são as expetativas de vida para um norte-americano branco e viúvo, quarentão intelectual de economia. Em vão que Walter Vale tenta aprender piano – um dos únicos instrumentos musicais toleráveis para o seu “tipo”. Mas não espantará que, mais tarde, se revele um inato talento para o djembê.
A sua vida só principia a mudar quando, por ocasião da necessidade de apresentar em Nova Iorque um livro para o qual nem contribui (ainda que a verdadeira autora tenha tido a magnanimidade interessada de o colocar como coautor), Vale encontra o seu apartamento nesta cidade ocupado por um casal de estrangeiros. Um jovem sírio de nome Tarek e uma jovem oriunda de Senegal chamada Zainab. Alguém, um desconhecido Ivan e que saberia da sua prolongada ausência de Nova Iorque, teria alugado, sem o seu consentimento, o apartamento a este casal. Contrariando as expectativas do casal Tarek e Zainab, Vale demonstra grande transigência perante este cenário de grosseira ocupação da sua propriedade, e, mesmo estes últimos, logo que provada a real pertença da propriedade, imediatamente se conformam à sua nova realidade e se apressam, por meio de mil e um pedidos de desculpas e gestos de embaraço, a fazer as malas. Mais tarde se saberá o motivo para a vigorosa cooperação do casal - estavam ambos ilegais no país.
Tudo ocorre, portanto, nessa, que ainda é esta, América pós 11 de Setembro. Uma América onde as contradições (hipocrisias!) da globalização se tornam ainda mais flagrantes, onde ainda se insiste na retórica das vantagens da abertura das economias dos países em desenvolvimento mas onde os imigrantes oriundos desses mesmos países “em desenvolvimento” encontram cada vez mais as portas fechadas para a realização das suas justificadas expectativas. Uma América constitucionalmente suspensa no que toca a estes estrangeiros, nomeadamente os que não são atestadamente ocidentais.
É sob este delicado contexto que Walter Vale acolhe na sua casa esse casal de estranhos depois de que estes se preparavam para partir. Não o fez por sobranceira comiseração ou piedade orgulhosa. De alguma forma Walter sabia que esse seu gesto enunciava já aquela ansiada rutura radical com a vida que escolhera até aí. 
É com Tarek que o professor começa a aprender djembê. É uma aprendizagem profunda que, no seu paulatino desenvolvimento, o faz comungar com todos aqueles negros e outros árabes do Central Park a tocar para um público ocasional e inteiramente gratuito. É uma formação que o liberta, que tem por efeito o estalar do frágil verniz de uma existência cuidadosamente maquilhada, mas espetacularmente falsa.  
Entretanto, depois do sírio lhe ter oferecido um djembê, Tarek é detido no metro. Tudo não passou de um infeliz incidente, tornado verosímil pela conjuntura xenofobicamente opressora do pós 11/10. De repente, depois dessa catástrofe, passou a ser permitida a detenção arbitrária de todo e qualquer imigrante (nomeadamente, o não caucasiano) que, assim, se descobriram elevados à categoria universal de suspeitos.
Walter não apenas se revolta com esta situação, sabendo da inocência de Tarek e da sua generosidade natural, como, inclusive, se voluntaria para acompanhar todo o processo, pagando um advogado e servindo de intermediário entre este, a namorada do jovem muçulmano e, mais tarde, a mãe de Tarek. Já que ambas não o podem visitar no centro de detenção pelo facto de estarem, igualmente, ilegais no país.
Mouna, a mãe do sírio, é uma mulher pujante, de carácter notável, que é forçada a regressar de Michigan após ter tentado contactar o seu filho durante três dias seguidos, e, pela qual, Walter rapidamente se enamora. Fugira de Síria, levando o seu filho, precisamente por motivos de perseguição política (que conduziram à morte na prisão do seu ex-marido, um ativo jornalista) e, agora, no “país da liberdade”, vê-se confrontada com a mesma realidade, desta feita, com o bem-estar do seu filho posto em causa.
Apesar dos esforços do economista e de Mouna, não conseguem evitar a deportação de Tarek. Que, aliás, Walter só toma conhecimento no próprio dia em que Tarek fora, sem aviso e com todo o expediente, deportado. Esse tratamento revolta Vale que, relevando a sua impotência contra esse estado de coisas, exterioriza a sua cólera, já impossível de ser contida, contra dois funcionários negros impávidos e serenos do lado de lá do guiché de informações do centro de detenção.
É com amargura que este se despede de Mouna, que não mais pode continuar nos Estados Unidos sabendo que o seu filho já está na Síria. Ambos sabem da elevada improbabilidade de se tornarem a ver e, consequentemente, de realizarem as suas existências incompletas por via de uma pedagogia de sucessiva abertura ao outro; não o outro fantasmático ou o outro que, implacavelmente estereotipado, não passa do mesmo, mas o outro concreto, incarnado, o outro outro. 

O filme termina com Walter a tocar vigorosamente djembê num banco na estação do metro. De camisa branca desfraldada, sem gravata, rodeado por dois negros, o barulho do metro no seu constante vai e vem, um homem branco, atravessando aquele cenário, vagamente indiferente, apressado, empregando uma discreta gravata cinzenta, barba bem aparada, um simples homem de negócios, talvez…

David Santos.