Talvez possamos fixar temporalmente, naquilo que designo aqui como a emergência
da consciência ecológica, a segunda metade do século XX até aos dias de hoje, reconhecendo ainda o efeito de uma alteração paradigmática que está longe de acabar. Podemos
também assumir que, em certa medida, esta preocupação generalizada com o ecossistema,
o "nascimento" de uma ética ambiental, coincide com a emergência de uma civilização
pós-material que, não estando tão preocupada com o imediatismo generalizado da
sua sobrevivência – devido, p. ex., a instabilidades existenciais sistemáticas
como a fome, a doença, a guerra, ou tudo isto em conjunto e se provocando – faz surgir
uma consciência “nova”, preocupada, p. ex., com o bem-estar social (e não só com o bem-estar individual, egoísta,
exclusivista, autocentrado!), com a harmonia, com a estética ambiental, com a distribuição
da riqueza, entre outros aspetos de pendor, digamos, holístico, muito
agradáveis e reconfortantes.
Por meio destas condições - que, por sua
vez, geram novas preocupações, novos problemas sociais - portanto, o antropocentrismo é emancipado em direção àquilo que se
designa contemporaneamente (pós-modernamente!) por biocentrismo. O problema é
que - e não negligenciado de todo o problema da escassez, da sustentabilidade
do planeta e etc. – o biocentrismo nunca pode deixar de ser reduzido ao
antropocentrismo de onde partiu. Quer dizer, o conceito de biocentrismo, ou,
melhor, a sua imagem, o seu entendimento vulgar e massificado (quase elevado a categorias religiosas) é apenas uma representação grosseira, primitiva, de um
antropocentrismo também ele primitivo. Assim, há um salto significativo,
talvez epistemológico, entre organizar os recursos naturais e, mesmo,
interiorizar uma ética não especista
(como diria Peter Singer) ou ecológica, consoante os interesses humanos e a
sua evolução em termos de alargamento da “esfera ética”, e, por outro lado,
sustentar, com certa violência e dogmatismo, uma representação grosseira,
primitiva, de um modo de organizar a sociedade que é radicalmente
contra-estrutural, isto é, contra o ponto ou momento civilizacional de
sociedades como a nossa, onde as mudanças profundas chocam sempre com a
oposição vincada da tradição e, a única maneira de contornar, a curto prazo,
esta oposição é, precisamente, por meio da violência, da violência física.
Advertia-nos o filósofo francês Serge
Latouche, aquando da sua entrevista ao jornal Público (entrevista já citada neste blog), que é necessário a
sociedade defender-se de quaisquer “ecofacismos” (depois de, talvez, termos de
sair da sociedade de consumo à força) que são, no meu entender, precisamente
motivados por representações grosseiras como as que subsistem associadas ao
conceito de biocentrismo. Podemos mesmo relacionar esta representação à imagética, p. ex., do Éden terrestre –
que é, por ventura, uma coisa bastante religiosa, de índole bíblica - onde os
passarinhos, os leõezinhos, as formiguinhas, as plantinhas e os homenzinhos,
convivem, em idílica harmonia, num solo suficiente amplo e biologicamente acolhedor
como a Terra – esta imagem é, portanto, bastante ingénua e simplista para se “plantar” ou/e "propagar" em qualquer consciência humana (desde a mais querida e digna funcionária fabril
até ao mais nobre e arguto académico reputado). É então, precisamente, este
fanatismo por realizar na prática esta imagem não suficientemente refletida de
um modelo societal, que, poderá ter por efeito, uma sobrecarga de violência com paralelo aos fascismos que dominaram a Europa da primeira metade do
século XX – motivados, p. ex., pela representação de uma sociedade pura, dominada por uma raça pura, etc.
Concluo defendendo que o que a nossa
civilização necessita, em primeiro lugar, é, sem dúvida, de uma “força política
verde” ou uma “consciência massificada verde”, que nos ajude a lidar com os problemas
da sustentabilidade e da escassez dos recursos planetários, e, por outro lado,
em último lugar, de uma “força política verde” ou “consciência massificada
verde” radicalizada de tal modo, que se converta numa nova religião, que, na
sua nova cruzada, vá desembainhando sistematicamente a espada em nome de uma
suposta e sagrada missão de salvar o mundo.
David Santos.
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