segunda-feira, 23 de julho de 2012

A Trilogia de Nova Iorque ou o anti-romance


A Trilogia de Nova Iorque é uma ficção sobre a ficção, uma narrativa auto-destrutiva, um anti-romance. Nesta obra a iminência de implosão do eventual sentido da história identificado pelo leitor é uma constante. Nunca sabemos quando o autor nos vai trair, quando, e sem o expectarmos, este resolve virar as cartas para cima. Pois que ficcionar é tão só persistirmos em nos mover à superfície das coisas e das palavras. E Paul Auster (outra ficção!) convoca-nos insistentemente a este grau zero da compreensão. Onde as palavras não pretendem significar coisa alguma, qualquer objecto real, dado estado de coisas, que seja. Não é, portanto, o mundo prático, o mundo da vida, onde o sentido das coisas, o real, nunca é suspenso, nunca é posto em causa. Aqui, neste mundo para além da dúvida, uma maça é uma maça, um sapato é um sapato, e a veracidade das coisas é atestada por uma espécie de consenso tácito; quando alguém chama maça a uma pêra é imediatamente corrigido, e quando dois ou mais interlocutores não se entendem quanto à designação de dado objecto ou realidade, das três uma: ou uma terceira personalidade, confirmada como autoridade, resolve a contenda; ou os interlocutores chegam, por necessidade e por meio do conflito, ao tal consenso, dissertando sobre a melhor opção; ou, ainda, não se consegue, de facto, atingir tal consentimento e o conflito permanece em aberto, pois que os interlocutores discordantes colocam permanentemente em causa a utilização de dado conceito para representar dada realidade. 
Mas este é um mundo frágil, sempre em risco de se desmoronar. Quando as palavras principiam em  se desagregar das coisas o sentido do real colapsa. Dizer que me chamo Paul Auster, que sou escritor, que tenho mulher e um filho, não quer significar coisa alguma. Não é uma questão de verificabilidade ou falsificabilidade. Posso ser, verdadeiramente, Paul Auster e ser escritor, mas isso diz mais sobre o como os outros me observam e como eu mesmo me compreendo através dos seus olhares ou juízos, do que sobre aquilo que sou para mim mesmo.
Vivemos no limiar do real. Nunca conseguimos saltar para o outro lado. Tudo o que sabemos sobre nós próprios e sobre os outros é o resultado de construções sociais, de uma Torre de Babel sempre por acabar, de relações de poder e saber. 
As coisas não têm incrustadas no seu ser as palavras que as esgotam. Vivemos no limiar do real. Eu chamo-me David Santos, tenho 25 anos, fui eu que escrevi esta peça e, no entanto, o que isto significa? Acrescentar o número de identidade, o número de contribuinte ou o número de segurança social, será que me esgota? Afirmar que a maior parte do meu corpo é composto por água; que nasci em Lisboa; que gosto de poesia; que menti sobre tudo o que escrevi até aqui...
E tu? Tu és o Paul Auster? És escritor, és americano, tens uma mulher e um filho? 
Se eu pudesse chegar até ti, como Blue, certamente perderia as minhas forças e, decerto, desmaiaria. E, no entanto, tu escondes o rosto da fatalidade, a qualquer momento podes emergir. Tu és quem me condena porque não te compreendo, porque as minhas palavras sobre ti não me libertam de ti. Tu és o espaço negado, o espaço que me recusa. Tu és o anti-espaço e a Trilogia de Nova Iorque é um anti-romance. 

David Santos.

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