A autonomia é a condição ética para nos podermos, com legitimidade, auto-afirmar. Sermos autónomos é tão simples como não dependermos de terceiros, isto, em diversos níveis e que não são necessariamente inter-dependentes, assim, podemos não ser autónomos ao nível financeiro, mas podemos ser autónomos ao nível cognitivo, e podemos, inclusive, não ser autónomos em quaisquer destes níveis. Assim, quando não somos autónomos, dependemos de terceiros, e se dependemos de terceiros já não somos soberanos – já estamos a ver aonde esta conversa nos pode levar! Mas, o pior, é que se não formos autónomos a nossa legitimidade moral para podermos formular juízos morais sobre aquilo em que precisamente não somos autónomos, por assim dizer, cai por terra.
Para que as coisas se possam tornar mais claras, vamos àquilo a que Marx chamava de “robinsonadas” (aqueles exercícios engraçados que os economistas liberais gostavam de fazer para explicarem os seus argumentos): imaginemos pois, que caímos em tal estado miserável, que passamos a depender inteiramente da bondade do vizinho, ou de uma dessas instituições sociais de caridade. Imaginemos pois, que dependemos, para nossa sobrevivência, dos trocos que o nosso vizinho caridosamente nos dá, ou da comida que certa instituição social nos fornece. Nesta situação hipotética, que legitimidade temos afinal, para nos queixarmos sobre se a comida que nos chega dessa instituição de caridade tem muito ou pouco sal, ou se os trocos que o vizinho nos dá só chegam para comprar latas de atum?
Concluímos então que, para podermos, com legitimidade, nos auto-afirmarmos, isto é, para podermos expor – sem sermos olhados de viés - os nossos pontos de vista e fazer vincular perante os outros a nossa posição sobre dada situação, torna-se necessário, por “contingência ética”, que sejamos autónomos.
Mas, claro, isto é apenas mais uma grande “robinsonada”, porque, na verdade, a autonomia, nomeadamente a financeira (aqui mais fácil de entender), não depende somente, e por vezes não depende de todo, da nossa exclusiva vontade. Se uma dada economia não cresce, não cria postos de trabalho, como é que o nosso amigo que caiu na miséria pode, novamente, recuperar a sua autonomia financeira – ainda que essa seja a sua vontade. Neste caso, é evidente que o nosso amigo tem legitimidade moral para julgar as políticas que um dado governo tomou ou tem tomado e que, do ponto de vista do nosso amigo, tem prejudicado a sua autonomia financeira. Da mesma maneira que um Estado, que ainda que já tenha verdadeiramente perdido a sua autonomia (consequentemente, a sua soberania) e dependa financeiramente de terceiros, tem legitimidade moral para criticar certos acontecimentos ou contextos, se, esses mesmos acontecimentos ou contextos, não dependem de todo, de sua exclusiva determinação, e que, ainda assim, ou por isso mesmo, tiveram por efeito, directa, ou indirectamente, a falência progressiva da sua autonomia.
Claro que, no final de todas as contas feitas, tudo se volta a embrulhar de novo. Já que, por um lado, tanto o nosso amigo como a grande figura do Estado, e ainda que não sejam autónomos em certo aspecto ou em vários aspectos, podem ter, ainda assim, legitimidade moral, para formular juízos éticos, para se auto-afirmarem, alegando legitimamente que a situação a que chegaram – a tal perda de autonomia - não foi provocada por sua exclusiva vontade, ou por quaisquer factores “endógenos”. Mas, por outro lado, e porque dependem de terceiros, a sua capacidade de se auto-afirmarem volta a estar condicionada pela tolerância de terceiros (para não dizer outra coisa) porque, exactamente, não são autónomos. Eis, talvez, o drama do nosso amigo, de Portugal, da Grécia e de mais uns poucos.
David Santos.
Para que as coisas se possam tornar mais claras, vamos àquilo a que Marx chamava de “robinsonadas” (aqueles exercícios engraçados que os economistas liberais gostavam de fazer para explicarem os seus argumentos): imaginemos pois, que caímos em tal estado miserável, que passamos a depender inteiramente da bondade do vizinho, ou de uma dessas instituições sociais de caridade. Imaginemos pois, que dependemos, para nossa sobrevivência, dos trocos que o nosso vizinho caridosamente nos dá, ou da comida que certa instituição social nos fornece. Nesta situação hipotética, que legitimidade temos afinal, para nos queixarmos sobre se a comida que nos chega dessa instituição de caridade tem muito ou pouco sal, ou se os trocos que o vizinho nos dá só chegam para comprar latas de atum?
Concluímos então que, para podermos, com legitimidade, nos auto-afirmarmos, isto é, para podermos expor – sem sermos olhados de viés - os nossos pontos de vista e fazer vincular perante os outros a nossa posição sobre dada situação, torna-se necessário, por “contingência ética”, que sejamos autónomos.
Mas, claro, isto é apenas mais uma grande “robinsonada”, porque, na verdade, a autonomia, nomeadamente a financeira (aqui mais fácil de entender), não depende somente, e por vezes não depende de todo, da nossa exclusiva vontade. Se uma dada economia não cresce, não cria postos de trabalho, como é que o nosso amigo que caiu na miséria pode, novamente, recuperar a sua autonomia financeira – ainda que essa seja a sua vontade. Neste caso, é evidente que o nosso amigo tem legitimidade moral para julgar as políticas que um dado governo tomou ou tem tomado e que, do ponto de vista do nosso amigo, tem prejudicado a sua autonomia financeira. Da mesma maneira que um Estado, que ainda que já tenha verdadeiramente perdido a sua autonomia (consequentemente, a sua soberania) e dependa financeiramente de terceiros, tem legitimidade moral para criticar certos acontecimentos ou contextos, se, esses mesmos acontecimentos ou contextos, não dependem de todo, de sua exclusiva determinação, e que, ainda assim, ou por isso mesmo, tiveram por efeito, directa, ou indirectamente, a falência progressiva da sua autonomia.
Claro que, no final de todas as contas feitas, tudo se volta a embrulhar de novo. Já que, por um lado, tanto o nosso amigo como a grande figura do Estado, e ainda que não sejam autónomos em certo aspecto ou em vários aspectos, podem ter, ainda assim, legitimidade moral, para formular juízos éticos, para se auto-afirmarem, alegando legitimamente que a situação a que chegaram – a tal perda de autonomia - não foi provocada por sua exclusiva vontade, ou por quaisquer factores “endógenos”. Mas, por outro lado, e porque dependem de terceiros, a sua capacidade de se auto-afirmarem volta a estar condicionada pela tolerância de terceiros (para não dizer outra coisa) porque, exactamente, não são autónomos. Eis, talvez, o drama do nosso amigo, de Portugal, da Grécia e de mais uns poucos.
David Santos.
2 comentários:
Viva David,
Estou completamente de acordo, e que vicioso drama, sem dúvida que a situação se volta sempre a embrulhar. Um texto claro e clarificador.
Até que ponto estamos condicionados pela "tolerância de terceiros" na nossa legítima tentativa de alegar factores a ter em conta na perda de autonomia?
Luís Mendes
Este texto potencia para uma reflexão acerca da desigualdade presente e cada vez mais acentuada entre os vários paises da União Europeia. Gerando senhores e escravos, tendo como batuta a riqueza económica dos países. Mas como sempre se diz "é preciso carcaça para necrófagos" que não procuram resolver o problema, mas acentuá-lo para aumentar mais o seu poder. Tudo isto resulta na suplantação prolongada do mais fraco, que sem hipótese de se afirmar e de atribuir culpas, se vê obrigado a obedecer sem contestar. Por outro lado, temos a manutenção de um status quo e de uma pseudo-união europeia, pois existe a atribuição de culpas a determinados países (mais desfavorecidos) e não a todos os países da UE, enquanto pertencentes União e em que todos partilhavam de uma e mesma dívida.
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