Quando finalizados os bens para a permuta, o
bando impôs que a comida fosse trocada pelo deleite sexual; o que causou a
indignação da maioria das mulheres e do seu protesto contra tal prática. Há apenas
uma que aceita de imediato a proposta dos bandidos, desde que tenha comida e
cama. Os homens que partilhavam a camarata com elas, procuraram convencê-las a
aceitar a dita troca. Nesse instante, há uma mulher que se volta para um homem
e pergunta-lhe solenemente diante de todos: “E se eles em vez de mulheres
quisessem homens para terem sexo? Seriam vocês capazes de aceitar?” O homem,
muito espantado, respondeu que se fosse esse o caso aceitaria. Elas acalmaram--se,
e rogadas lá foram seguindo os capatazes do grupo que as levaram até ao
terceiro esquerdo do corredor, durante o caminho a mulher do médico espreita
para dentro das camaratas dentro das quais haviam mulheres que gritavam cada
vez que um homem lhes tocava, quando elas chegam à camarata o porteiro avisa de
imediato a sua chegada. O chefe do bando escolheu aquela que mais lhe agradava
para satisfazer a sua concupiscência, à medida que o tempo ia passando o
cenário ia-se transformando em bacanal e de violência desenfreada em que as
mulheres davam espasmos de dor, uma delas chega a morrer logo depois da orgia,
no outro dia de manhã, em que todas voltavam para as suas camaratas com a
comida. De manhã, voltam outra vez os mensageiros à procura de novas mulheres,
pelo percurso, passam pela camarata da mulher do médico. Os três criticavam a
mulher das insónias, desdenhavam-lhe o corpo, que o corpo dela não valia nada, um
deles pergunta o que é feito dela; ao que a mulher do médico retruca em tom
provocatório, com a intenção de lhes causar algum remorso, que ela não valia
nada e, consequentemente, que a pergunta nem sequer merecia ser colocada.
Esta chantagem dos cegos malvados causa na
mulher do médico o desejo de querer pôr cobro a tudo isto. Ela olha para a
parede da sua camarata onde tinha pendurado a tesoura que encontrou na sua
mala, pensando em usa-la como um punhal, agarra-a e vai até à camarata onde
estavam os cegos malvados, procurando sempre passar despercebida no meio deles.
Direcciona-se para o chefe dos bandidos que estava a ter relações sexuais,
coloca-se atrás do chefe e aponta-lhe a tesoura ao pescoço no qual iria
desferir o golpe mortal, o sangue esguicha e salpica a cara da mulher que
prestava o serviço ao chefe do bando, a rapariga emite um grito com tal
intensidade que põe todo o grupo em alvoroço. As mulheres entram em rodopio procurando
uma saída do quarto; a mulher do médico agarra a dita mulher e tapa-lhe a boca
para evitar que ela continue a gritar e para sair dali de forma segura, depois
reúne as mulheres que ali se encontravam e leva-as em fila indiana até às
outras camaratas. Atrás delas, à porta da camarata dos bandidos, estava o
contabilista dando tiros para o tecto que gritou que as refeições iriam deixar
de ser distribuídas, dando a entender que era ele agora quem dava as ordens.
A necessidade de alimento compele os cegos a
magicar um plano para o conseguir. O primeiro a falar é o velho da venda preta
que propõe que se devia denunciar a culpada pela morte do chefe do bando de
malfeitores, talvez o bando dos bandidos os perdoasse e lhes entregassem
comida; o segundo homem, o ajudante de farmácia, diz que todos se deviam unir
para entrar à força na camarata dos bandidos; por último, o médico diz que
todos deviam aguardar até à hora de entrega das refeições pelos militares e que
não deviam atacar o bando por enquanto, porque estavam armados. Todos esperaram
até à hora da refeição, contudo os militares nunca mais chegaram com a comida e
ainda continuaram à espera, só depois de passadas algumas horas é que decidiram
atuar. Os cegos organizam-se e planeiam a forma como devem entrar na camarata
dos bandidos, armam-se com os ferros das camas, mandam a mulher do médico ir
ver se os bandidos tinham barrado a entrada com as camas; a mulher do médico
vai à camarata dos bandidos para verificar se estes tinham alguma coisa a tapar
a entrada, e de facto a suspeita confirmou-se da pior forma, os bandidos tinham
colocado duas filas de camas a tapar a entrada; volta novamente à camarata para
contar aos companheiros o que tinha visto. Conta-lhes que não é possível entrar
na camarata dos bandidos sem serem detetados, e de que as hipóteses de sair
daquela camarata com vida eram escassas. Mesmo assim, os cegos tentam forçar a
entrada, do interior da camarata saem dois disparos que acabam por levar a vida
de dois homens, um deles farmacêutico. No desejo de entrar naquela camarata
houve uma mulher que pensou que a melhor hipótese seria deitar fogo às camas
com o intento de obrigar os bandidos a sair da sua toca, e assim fez, agarrou
num isqueiro e foi até à entrada da camarata dos bandidos, começou por pegar
fogo na parte lateral das camas. Um pensamento invadiu de imediato a cabeça da
mulher: «e se os bandidos têm um balde e apagam o fogo», meteu-se debaixo das
camas e passou o isqueiro a todo o comprimento das mesmas, mas depressa o fogo
lambeu-lhe os cabelos e ela tornou-se numa pira. Dentro da camarata, os cegos
malvados estavam em pânico que lhes era animado pelo cheiro a fumo e pelo calor
estonteante. Sentem as labaredas a aproximar-se, começam a subir para cima dos
móveis para conseguir alívio, mas acabam por servir de alimento às chamas.
Aqueles que estavam no corredor à espera para lhes atacar, ouvem os uivos
daqueles que ardiam, depressa entendem que têm de sair dali. Vão para o
exterior do manicómio, ajudados pela mulher do médico. Já no exterior, a mulher
do médico observa que os soldados já lá não estão para os vigiar; a mulher
observa agora o manicómio a arder, era a única fonte de calor e de luz que
rompia com aquela noite gélida, exausta senta-se no chão tal como todos os
outros, aconchegados pelo calor proveniente do manicómio acabam por dormir. De
manhã saem do perímetro de segurança que tinha sido montado pelos soldados,
combinam para qual das casas é que devem ir. Chegam a acordo, a primeira casa
para onde eles tencionam ir é da rapariga dos óculos escuros e a segunda é a
casa do velho de venda preta, partindo daqui a restante ordem de casas a
visitar: a da mulher do médico, a do rapazinho estrábico e a do primeiro cego.
Apesar de tudo, como o velho da venda preta apenas tinha o quarto alugado e o
rapazinho estrábico não se lembrava onde morava, limitaram-se, portanto, a
seguir os restantes.
Dirigem-se para o centro da
cidade e deparam-se com um cenário desolador, com casas e lojas pilhadas, com
ruas sujas de tudo aquilo que se possa imaginar de nojento. As pessoas que
estavam na rua procuravam desesperadamente algo que lhes possa encher o
estômago. Vêem um grupo a sair de uma loja, a mulher do médico vai falar com
alguém desse grupo; um dos elementos do dito grupo transmite-lhe que a doença
se propagou de um grupo de pessoas para depois se estender a todo o país.
Aqueles soldados que guardavam o manicómio foram os últimos a serem vitimados
pelo «mal branco». Além disso, a cidade já não é abastecida com alimento e
outros bens essenciais desde que a doença se alastrou. Desde modo, as pessoas
sentido falta de alimento começaram a alimentar-se dos seus animais domésticos,
depois começaram a alimentar-se dos cães vadios mas depressa estes aprenderam a
evitar as pessoas, havia também grupos de cães raivosos que atacavam as
pessoas. E ainda havia pessoas que se alimentavam de cadáveres, humanos ou não,
tal como faziam os cães. Pelo motivo de escassez de alimento o grupo que estava
no interior da loja decide ir à procura de alimento nas cidades mais próximas;
despedem-se.
A mulher do médico e o resto
do seu séquito entram dentro da loja de eletrodomésticos, ela diz-lhes que
aguardem por ela no interior da loja enquanto vai buscar alimento. A mulher sai
da loja e deambula pela cidade à procura de um supermercado ou de alguma loja
que ainda tenha uma réstia de algo que se coma. Finalmente, chegada ao
supermercado a mulher do médico vê, no interior da superfície comercial, os
cegos a andarem por entre as prateleiras à procura de alimento, chegavam a
derrubar estantes, a andar de gatas, enfim, tudo o que uma mistura de cegueira
e fome lhes possa obrigar a fazer na busca desesperada por alimento. A mulher
do médico deu rapidamente com o local onde os alimentos estavam armazenados, ou
seja, a cave do supermercado, abriu a porta devagar, observou, foi buscar sacos
e entrou para encher os sacos que tinha na mão com todos os alimentos e objetos
que queria, comeu ainda um chouriço para recobrar forças para a sua empresa,
depois de saciar a fome ela saiu da cave e fechou a porta, com a intenção de
mais tarde ali voltar. Olhou para a saída do supermercado, procurou chegar até
lá pé ante pé contornando os cegos; quando há um cego, que a meio do caminho,
sente um bafo forte a chouriço e grita que alguém estava a comer chouriço;
nisto, a mulher do médico mete as iguarias atrás das costas e lança-se numa
correria em direção à porta de saída do supermercado. No caminho de regresso,
passa por diversos cegos com a cara apontada para o céu e de boca aberta para
receber a chuva, alguns com baldes e tachos para armazenar água; e por viaturas
estacionadas de forma caótica. Enquanto caminha de regresso a casa, a mulher do
médico procura saber por onde é que veio, começa a ficar cada vez mais
desesperada pois acredita que se perdeu, senta-se e desata a chorar, nesse
momento, um cão aproxima-se dela; ela afaga- -o e começa a lacrimejar para cima
do animal. Para sua grande sorte, ela repara que há ali, à sua frente, um mapa
da cidade; chegou-se para junto do mapa e procurou qual era a rua onde estava
situada e a loja de electrodomésticos onde os seus amigos estavam. Seguiu pelo
caminho que estava indicado no mapa até à loja, o cão limitou-se a segui-la
para todo o lado.
Quando chegou ao
estabelecimento, começa por distribuir comida ao grupo, narrou-lhes o que se
tinha passado no supermercado, rindo-se todos do infortúnio do cego que tinha
espetado o vidro no joelho, chegando a dar alguma comida que trazia no saco ao
cão que devorou tudo o que ela lhe entregou. Depois do repasto, o grupo saiu da
loja com o objetivo de procurar vestuário e calçado, após isto, seguiram para o
apartamento da rapariga dos óculos escuros. Chegam ao prédio onde vivia a
rapariga, a mulher do médico juntamente com a rapariga dos óculos escuros sobem
ao segundo apartamento, mas não estava ninguém para abrir a porta. As duas
procuram nos restantes apartamentos e nada, até que no primeiro piso encontram
uma vizinha, que lhes abre a porta, denotando-se um cheiro putrefacto que vinha
do interior do apartamento, a mulher põe as duas a par do que se passou com os
pais e restantes vizinhos após terem levado a rapariga de óculos escuros para o
manicómio abandonado, revelando-lhes que vivia da comida que estava armazenada
dentro das casas e daquilo que o quintal dos fundos do prédio produzia. A
vizinha (idosa e de cabelos desgrenhados) ofereceu passagem às duas para irem
ao apartamento da rapariga dos óculos escuros pelas escadas de salvação, mas
avisa-as de que já não existe comida nos restantes apartamentos, a mulher do
médico responde-lhe que trazem comida, nessa altura, a velha, em troca do
favor, pede-lhes alguma comida. As duas entram no apartamento, e o cheiro
intensifica-se cada vez mais à medida que avançam no interior da habitação,
atingindo o seu auge na cozinha onde estavam coelhos esfolados, além de restos
de comida; saem pelos fundos e sobem ao apartamento da rapariga dos óculos
escuros pelas escadas de salvação.
Entraram no apartamento da
rapariga de óculos escuros pela porta das traseiras que se encontrava aberta,
já a respetiva chave encontrava-se na posse da velha; mas, para grande
felicidade das duas mulheres, as chaves da porta de entrada ainda estavam
penduradas na fechadura, não sendo necessário pedir à velha para deixar passar
todo o grupo, evitando dessa forma o seu mau humor. A mulher do médico foi
chamar o grupo que era seguido pelo cão (chamado pelo narrador o cão das
lágrimas), o barulho do tropel leva a vizinha do primeiro andar a abrir a porta
e a perguntar quem vinha, a rapariga de óculos escuros responde-lhe que eram os
restantes elementos do seu grupo, nesse momento, a velha relembra-lhes que lhe
tinham de lhe dar de comida, e foi aí que o cão das lágrimas ladrou ferozmente
à velha que se recolheu assustada com o cão. Assim que todos entraram dentro do
apartamento, antes de jantarem, a rapariga de óculos escuros e a mulher do
médico foram ao andar de baixo cumprir o compromisso; nessa altura a velha
entrega a chave dos fundos à rapariga de óculos escuros. A seguir ao repasto, a
rapariga de óculos escuros e a mulher do médico conversam, a primeira disse que
tinha intenções de ficar no apartamento, já a segunda alerta-a para a competição
pelo alimento com a vizinha de baixo além da hipótese de adquirir os hábitos da
mesma, como comer carne crua e da casa parecer uma pocilga, mas a rapariga de
óculos escuros encara isso como inevitável assim que se perdeu a visão e que
sem este dom é como se estivesse morta. Nesse sentido, a mulher do médico
diz-lhe que devido à cegueira os sentimentos tenham mudado, pois os sentimentos
são construídos em grande parte pela visão; por este motivo, sugere-lhe que
venha com o resto do grupo até à casa do médico.
Na manhã seguinte, trataram desde logo de
satisfazer as suas necessidades fisiológicas e de higiene ao ar livre. Depois
de todos estarem satisfeitos, foram para a mesa para decidir o que fazer, o que
a mulher do médico propõe ao grupo é de que continuem a viver juntos, antes de
saírem recomenda à rapariga de óculos escuros que deixe as chaves com a vizinha
do primeiro andar em troca do favor entregava-lhe ainda mais alimento,
posteriormente o grupo seguiu caminho para a casa do médico. A mulher do médico
ia à frente do grupo, quando saem do prédio colocam-se ao lado uns dos outros e
seguem de mãos dadas e entrançados com uma tira de pano até à casa do médico.
Pelo caminho por um luxuoso bairro, cuja riqueza se espelha nas viaturas que
estão estacionadas diante das vivendas, uma delas uma limousine estacionada à
porta de um banco. A pessoa a quem servia, o presidente do conselho de
administração, que ficou preso no elevador juntamente com o ascensor por causa
de uma falha de energia provocada pela paragem do gerador que ainda não era
automático, que por isso necessitava dos eletricistas para o manter a
funcionar, mas que por motivos do mal branco não o puderam fazer.
Fernando de Almeida