segunda-feira, 17 de julho de 2006
Ser de esquerda ou de direita hoje
Depois do tempo em que Abril floriu, quase toda a gente se dizia de esquerda. Por convicção, por oportunismo ou, simplesmente, porque estava na moda o ideal de esquerda. Contudo, os modismos passam e a realidade sobressai com a sedimentação do tempo.
Nos idos de 1974/75, ninguém ousava afirmar «eu sou de direita», isso era arriscado. Nem aqueles que hoje orgulhosamente se assumem como tal tinham a coragem de o dizer. Era perigoso para quem o afirmasse. Ser de direita significava ser fascista, reaccionário, capitalista ou lacaio do capitalismo, dizia-se. Com efeito, ser de direita era estar contra a classe operária, o proletariado, ou negar a sua própria classe. E eis que toda a gente, ou quase, vestia os adornos do operário, figura mitificada na época, que era considerado, muitas vezes sem saber porquê, como progressista, defensor do povo... E então, era ver alguns daqueles que hoje se assume pomposamente de direita, vestir os tais adornos, símbolos da esquerda da época, tais como: cabelo comprido, barba crescida e desgrenhada, palavrão pronto na boca, etc., etc.
Os tempos mudam, os símbolos políticos também. No entanto, ainda temos referências sérias quer de direita quer de esquerda. Que referências? A marca de mulheres e de homens que sempre afirmaram as suas convicções político-sociais, que não balançaram conforme as oportunidades, que mantiveram, embora evoluindo – que o tempo a isso obriga – nos princípios que enformam as suas convicções.
Aprendemos que ser de esquerda é defender o interesse do geral, é ser solidário, é estar ao lado daqueles que menos podem, é lutar contra as desigualdades entre pessoas e povos, é eliminar a repressão e a opressão, é defender a liberdade e criar as condições para a existência de um mundo mais justo e solidário.
E ser de direita? Seria menos complicado dizer que é o contrário do que dissemos no parágrafo anterior. Mas não. Hoje, está na moda a afirmação de direita. Veja-se como alguns políticos, hoje em moda, se afirmam orgulhosamente de direita. E mais, repare-se como, quando se dizem de direita, estão a afirmar que a esquerda é uma peste, é o mal. Aliás, os direitistas são hábeis maniqueístas. Ou seja, os homens e mulheres que se afirmam de direita, especialmente a direita radical, tal como certa esquerda em 1975, tem dificuldade em reconhecer e aceitar a outra parte. E então, quando falam dos princípios de esquerda fazem-no com desdém.
Que valores defende a direita, hoje? Analise-se os seus discursos, que lá está tudo: a Pátria, o trabalho, a autoridade, o respeito pelos superiores valores do Estado, o dinheiro, o beija-mão, a reverência e o endeusamento, de entre outras ideias similares.
Toda a gente defende a Pátria, mas quando se fala tanto em patriotismo, que se esconde? O trabalho é a única fonte de riqueza, mas o seu a seu dono. Porque para que alguns sejam muito ricos, muitos estão muito pobres. A direita tem dificuldade em redistribuir a mais valia. Autoridade sim, mas sem autoritarismos. A direita faz apelos constantes à autoridade do Estado, querendo com isso indicar a sua autoridade. A autoridade que defendem é a autoridade imposta, não a conquistada pelo exemplo. Com efeito, a direita fala como se estivesse acima da maralha. Todo o patriota respeita o Estado, que somos todos nós, mas será que o Estado que a direita propala respeita o cidadão comum? Toda a gente precisa de dinheiro. Sem esse nobre metal a nossa vida é um inferno. Mas certa direita só vê euros, sonha com eles, quer controlá-los e deixar no mealheiro umas migalhas, uns cêntimos para o Zé encontrado pela direita em Coimbra, aquando da campanha eleitoral para as legislativas de 2002, lembra-se? A direita folclórica gosta muito do beija-mão, gosta que lhe tirem o chapéu, gosta da reverência e do endeusamento. Pois que faça bom proveito.
Como apontamento final, direi que neste mundo da globalização, onde tudo é tão rápido e fluído, onde a generosidade não abunda, onde a concorrência não olha a meios, onde se procura aniquilar o outro e impor a vontade própria, é difícil apreender claramente onde está o traço que separa o homem de esquerda do homem de direita. E porquê? Porque vemos homens de esquerda com práticas que habitualmente são atribuídas à direita, e homens de direita com atitudes normalmente atribuídas à esquerda. O exemplo depende da oportunidade. É tal a miscelânea de comportamentos humanos neste início de século, que o que devemos relevar são as boas práticas, acções e atitudes de todos os homens e mulheres, e repudiar o contrário, para que a pessoa humana possa contribuir para um mundo mais fraterno, generoso, solidário e livre, como quis Abril que o Zeca Afonso cantou. (António Pinela, Reflexões, Março de 2003).
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