segunda-feira, 10 de março de 2008

A Memória...

«O que é a memória? Já não me lembro. Lembro-me de ter estudado e lembro-me da cor da capa do livro de Aristóteles. Lembro-me da rapariga que estava sentada ao meu lado. Mas não me lembro de mais nada. Porque é que eu me lembro de vinte marcas de desodorizante e não me consigo lembrar dos olhos da minha mãe? Os desodorizantes interessam-me? Não. Mas a minha mãe faz-me falta.
Porque é que me lembro exactamente das caras que vi no comboio a semana passada e não me consigo nunca lembrar exactamente da cara da pessoa de quem mais gosto? O amor e a memória conspiram juntos. É por não nos conseguirmos lembrar de quem amamos que temos de estar sempre junto dela. A olhar para ela. Cada vez que a vejo sou apanhado de surpresa. Baque do costume. Já chateia. É sempre diferente, mais bonita, mais interessante do que eu pensava.
Porque é que eu não me consigo lembrar da cara dela? Já tentei. Já fiz tudo. Fiquei acordado a tentar aprendê-la de cor. Estudei-a. Sobrancelha por sobrancelha. Dez minutos para cada uma. Tirei apontamentos. Escrevi-a num caderno. Tirei-lhe fotografias. Pendurei-a na parede. Decorei o meu quarto (e os interiores do meu coração) com ela, mas mesmo assim não a consigo ver. No momento em que tiro os olhos dela, desaparece. Os meus olhos prendem-se a ela, mas os olhos dela não param dentro de mim. Isto assusta-me. Ela impressiona-me tanto. Mas não deixa impressão. Deixa um vazio. É isso que o amor faz. Troça de nós. Ou se calhar ela é como um bombardeamento que presencio e esqueço. Como um soldado cheio de medo, escondido na minha trincheira, varro-a da memória. E depois ela volta quando começo a sonhar.
A memória não é uma vontade. Não me lembro do que quero. Lembro-me do que não quero. Odeio ser assaltado por uma reminiscência. Apetece-me resistir, não entregar o que ela pede, chamar a polícia. Mas somos todos uns bananas da lembrança. Não atacamos a memória: somos atacados por ela. Passamos por um perfume e mergulhamos. Passam uma cantiga na telefonia e caímos. Passa um nome na rua e passámo-nos.
Devíamos provocar a lembrança. Estou aqui sentado e resolvo lembrar-me dum amigo meu que não vejo há muito tempo. Vou buscar as cartas que me escreveu. Abro uma garrafa do whisky que ele costuma beber. Ponho o disco que ouvíamos. E lembro-me. Assim lembrar faz bem. Faço um esforço. Quando o conheci? Quantas vezes nos rimos das mesmas coisas? Assim lembrar é feliz. Quando somos apanhados desprevenidos é que nos dói. Velha questão. Como é que eu torno as minhas saudades em lembranças?
Faço de conta que alguém está à procura dele. Faço de conta que alguém pergunta por ele. Como num interrogatório. Tudo o que pode depender de um pormenor. Da cor de uma camisola. Da hora e da temperatura do dia. “Tente lembrar-se!” Quando me lembro assim dum amigo meu, procurando com toda a minha lembrança dele, fazendo força na cabeça, faço fé no meu coração e torno-me testemunha da amizade dele.
Não é isto que fazemos. Somos espontâneos. Só nos lembramos do que nos ocorre. Bestas. Molengas. Achamos que a memória não se deve forçar. Friques. Esprememos os miolos em exames absurdos sobre assuntos que esquecemos logo de seguida, mas quando se trata da nossa alma somos incapazes de fazer o mínimo de esforço. Ficamos de perna aberta perante a sucessão das coisas. Parecemos daqueles patos de barraca-de-feira à espera de sermos atingidos pelos disparos. Digo “Aquele filme fez-me lembrar o João.” Fez-me. Obrigou-me. Preferia ter sido eu a decidir-me lembrar. A lembrança, que é de todos os estados de alma o mais bonito, por fazer pouco do tempo e trocar as voltas todas à realidade, deveria ser uma coisa que nós fizéssemos, por vontade, por amor, por hábito. Não deveria ser uma coisa que nos fosse feita.
Porque é que somos tão passivos na maneira de nos lembrarmos? Porque nos põe triste a lembrança da felicidade. Porque, muito portuguesmente, só nos ocorre a lembrança da felicidade quando estamos afundados na mais terrível tristeza. É com a primeira lágrima que vem a imagem do primeiro sorriso. Lembrar torna-se uma maneira de nos martirizamos. E quanto mais pensamos “Ai, eu fui tão feliz!” mais tristes nos tornamos. Nestas circunstâncias, a lembrança é apenas uma das modalidades portuguesas de termos pena de nós próprios.
Devíamo-nos lembrar da felicidade quando estivéssemos felizes. A lembrança fica bem à alegria. Em vez de nos entregarmos completamente ao momento de alegria, com aquela ganância que acaba por ser entre nós uma forma de desespero, deveríamos deixar um pouco de nós, ir um pouco atrás, ir buscar outro momento passado, outra passada alegria. Quando dois amantes estão a rir-se, nos braços um do outro, nariz incapaz de largar nariz, é lindo quando um deles diz “Lembras-te?”
Há outra coisa que não está certa em nós. Quando alguém desaparece da nossa vida, somos sempre apanhados desprevenidos. Sentimo-nos arrependidos de não ter passado mais tempos com ele, de não ter ido mais longe. Há pessoas, como os nossos pais, que sabemos irão morrer antes de nós. E sabemos de antemão que nos vai doer. No entanto, comportamo-nos como se as pessoas de quem gostamos fossem durar para sempre. Em vida não fazemos nunca o esforço consciente de olhar para elas como que se prepara para lembrá-las. Quando elas desaparecem, não temos delas a memória que nos chegue. Para as lembrar, que é como quem diz, prolongá-las. A memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Devemos cuidar deles como da vida.
Devemos tentar aprender de cor quem amamos. Tentar fixar. Armazená-las para o dia em que nos fizerem falta. São pobres as maneiras que temos para o fazer, é tão fraca a memória, que todo o esforço é pouco. Guardá-las é tão difícil. Eu tenho um pequeno truque. Quando estou com quem amo, quando tenho a sorte de estar à frente de quem adivinho a saudade de nunca mais a ver, faço de conta que ela morreu, mas voltou um único dia, para me dar uma última oportunidade de a rever, olhar de cima a baixo. Fazer as ultimas perguntas que faltou fazer, reparar em tudo o que não vi; uma ultima oportunidade de a resguardar e de a reter. Funciona.
A memória é uma desarrumação. Deixada ao acaso, torna-se num armazém de retalhos. Se deixarmos a memória à vontade dos fregueses, nunca mais encontramos o que queremos. Veja só as coisas de que se lembra. Escreva num papel. Tanta inutilidade! Como é possível encontrar esse dia quente no rio que procura entre tantos nomes de cacilheiros, cabeçalhos de jornais e caras de cançonetistas? A nossa memória é um monte de lixo onde estão as luzes da nossa vida. Já que não nos conseguimos esquecer de tantas ninharias, pormenores irrelevantes, restos de estudos obsoletos – as apófises dos pombos e os sistemas de clivagem, a paisagem de Vila Franca, os invólucros de rebuçados – devíamos fazer um esforço grande para nos lembrarmos do que nos importa e encanta. Enquanto está a acontecer. Bem sei que a magia não é memorizável. Mas quando se repara nela com propósito e gratidão, fica a poeira do momento. E a poeira do momento é melhor do que nada.
A memória em si não é nada. Não é bonita nem feia, nem útil, nem inútil. Ia a dizer que é o que se quiser mas nem isso. É uma maneira de dar sentido ao que se vive. É uma coisa que fazemos. Em nome do que trazemos na alma, e por causa do amor, faz sentido fazê-la o melhor que podemos. Agora há alguém que seja capaz de me explicar porque é que eu não sou capaz de me lembrar da cara do meu amor? A memória é uma coisa que não lembra ao diabo.»


Miguel Esteves Cardoso, in As minhas aventuras na Republica Portuguesa

2 comentários:

Anónimo disse...

Peço desculpa pela extensão mas é um texto que não se pode cortar para se perceber correctamente. Um Abraço.

Márcio Meruje disse...
Este comentário foi removido pelo autor.