Vivemos acima das nossas possibilidades. A frase
é repetida até à exaustão, não apenas pelo governo - que procura, desta forma,
legitimar retoricamente os motivos para a sua austeridade -, como por
determinados arautos, concubinos e outros comentadores da comunicação social (os opinion makers à portuguesa), como ainda
por personalidades como a Isabel Jonet e outros membros eclesiásticos. O que
estes ainda não se deram ao trabalho de fazer foi de analisar, do ponto vista
formal, lógico, a frase em questão; se se tivessem dado a esse trabalho decerto
perceberiam que a proposição que defendem só tem, ou só ganha sentido, por meio
do enviesamento ideológico que encobrem.
Ora vejamos, não é viver acima das
possibilidades viver o impossível? Por seu turno, viver o impossível é
manifestamente impossível, logo, o sentido desta asserção não pode estar
contido na frase em si, isto é, considerada isoladamente. Portanto, para
podermos compreender o que pretendem significar os que dela fazem, até à
náusea, uso, teremos de adentrar, por sua vez, na conceção que estes fazem da
realidade que pretendem designar.
É que, de facto, se vivemos até agora como
vivemos – acima das nossas possibilidades, como insistem alguns e que não são
poucos! - é porque o sistema socioeconómico, mais que o permitiu, o
possibilitou, isto é, tornou possível. Agora, vem à boca a questão, por que é
que, hoje, já não é possível continuarmos a viver como anteriormente? Como se
justifica esta regressão ou “arrefecimento” das condições de vida gerais, que, permitiram,
p. ex., a emergência de uma classe média massificada e o Estado Social que
tivemos até agora e que hoje está sob ameaça patente? O que vem interromper
esse estado de coisas? Se o trabalho social, a produção mundial, com a UE à
cabeça, explorada sob a égide capitalista, tornou possível, até este momento de
regressão, o nível de vida que tivemos, qual o fator, ou conjunto de fatores,
que vêm agora inviabilizar esta realidade?
O que pretendo chamar a atenção é para o facto
de a possibilidade de termos tido as condições de vida que até este momento
tivemos, não é uma possibilidade do sistema capitalista financeiro mas, antes,
e ainda que este primeiro o queria obliterar nomeadamente com a preservação da
cisão/relação credor/devedor, do trabalho social. A UE, com todos os seus
recursos (tanto naturais como humanos), com a sua capacidade de produção, não
precisa que seja o sistema bancário (enquanto linha da frente do sistema
financeiro mundial) a fazer parte significativa da distribuição dessa riqueza sob
a forma de créditos, isto é, de dívida. A UE, com os recursos e mecanismos que
possui, não precisa desta crise. O que está em jogo é a urgência de uma nova
racionalidade que possa gerir o binómio produção/distribuição, preservando o
enquadramento institucional da UE (enquanto unidade supranacional), sem que as
relações - detentores dos meios de produção/detentores da força de trabalho - ou -
credores/devedores - se convertam em relações de poder consolidadas e
impossibilitem uma distribuição justa do produto global dessa unidade
supranacional.
David Santos.