“ (…) costumava, com frequência, subir silenciosamente até ao quarto trancado, abrir a porta com a chave que trazia agora sempre consigo, e, com um espelho, ficar em frente do retrato que dele fizera Basil Hallward, olhando ora o rosto maligno e envelhecido da tela, ora o jovem rosto formoso que lhe devolvia o sorriso na superfície polida do espelho. A nitidez do contraste estimulava a sua sensação de prazer. Sentia-se cada vez mais enamorado da própria beleza, e cada vez mais interessado na corrupção da sua alma. Costumava perscrutar com um cuidado minucioso, e às vezes com um gozo monstruoso e terrível, as rugas hediondas que vincavam a testa engelhada, ou que contornavam os lábios grossos e sensuais, interrogando-se por vezes quais seriam os mais horríveis: se os estigmas do pecado, ou os da idade. (…)”
“Por vezes, ouve-se dizer que a Beleza é apenas superficial. Talvez seja. Mas, ao menos, não é tão superficial como o Pensamento. Considero a Beleza a maravilha das maravilhas. Só os fúteis não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível.” Estas frases surgem ainda no início da obra O Retrato de Dorian Gray e vão influenciar o protagonista ao longo do seu percurso. A obra inicia-se com um quadro que reflecte toda a existência vital do jovem Gray, um quadro que funciona como um espelho. No entanto, progressivamente, o quadro vai envelhecendo, mostrando quer o passar dos anos, quer a corrupção da alma de Gray que, pelo contrário, se mantém sempre jovem, como se o quadro adquirisse vida própria ou tivesse mesmo “roubado” essa vida ao protagonista que lhe servira de modelo. No curto excerto que analisamos, é perceptível que neste romance se aliam as preocupações estéticas com os paradoxos morais, numa reflexão cuidada sobre o envelhecimento, o prazer, o pecado e o castigo.
Apresenta-se aqui, deste modo, a questão da representação. Com a representação abrange-se uma segunda presença da realidade conhecida (como o próprio conceito representar já indica), pois compreende toda a estrutura da vida psíquica (sensações, percepções, imagens, ideias…). A representação confere, nesta medida, um novo modo de ser, liberto das determinações e limites com que se apresentava na natureza, no seu estado original, primário. Assim, como diria São Tomás, a representação adquire uma nova perfeição na medida em que pode contemplar, inscrita em si mesma, toda a ordem universal e suas causas. Para que a representação atinja o efeito de perfeição pretendido, é necessária uma reciprocidade de acção e reacção entre dois pólos: o sujeito e o objecto. O que se terá passado no caso deste romance foi uma reciprocidade demasiado forte (quer por parte do pintor, que fez desse quadro a sua obra-prima – “Um sonho de forma em dias de pensamento.” -; quer por parte do modelo, o jovem Dorian, que vê nele o seu espelho e o admira apaixonadamente), acabando o retrato por ganhar vida, por se tornar também ele sujeito. Mas torna-se necessário explicitar um pouco melhor a ideia de segunda presença já acima referida: só existe representação de alguma coisa invisível ou ausente; e alguma coisa invisível ou ausente só pode ser conhecida como tal se e na medida em que for devidamente representada. Existem, portanto, dois tipos de presença: a presença directa e efectiva que assinala e garante a presença de outra coisa que em si mesma está ausente; e por outro lado a presença indirecta e mediata que está assegurada e garantida pela primeira. Mas como saber que um conhecimento meramente representativo e, portanto, indirecto, é verdadeiro, isto é, corresponde à verdade em si mesma? O retrato de Gray deixou de ser apenas indirecto, acabou por se verificar uma mútua ralação vital entre a presença directa e efectiva e a presença indirecta e mediata; embrenharam-se, confundiram-se. O retrato ganha vida, torna-se, como Gray afirma, o rosto da sua alma. É sujeito activo da vida do sempre jovem Dorian: apodera-se das suas feições e rouba-lhe todas as modificações de que seria vítima com o passar do tampo, envelhecendo em vez de Gray e revelando toda a sua decadência interior, como um diário escrito de forma mágica. Como diz Dorian Gray: “(…) Continha o segredo da sua vida e revelava a sua história. Ensinara-lhe a amar a sua própria beleza. Ensinar-lhe-ia a odiar a própria alma? (…)”. Na verdade, a observação do quadro resultava para Gray numa sensação de prazer, numa comparação desmedida entre o rosto belo da obra de arte em que se tornara e dos estigmas de corrupção que o retrato revelava como uma sátira. Mantinha o seu rosto imaculadamente perfeito mas o retrato anunciava as cicatrizes do tempo e do pecado. Mas o prazer que tal visão e até mesmo estudo minucioso lhe provocava nada tinha de catártico; pelo contrário, mostrava-se um prazer desumano, assombroso, que em vez de o libertar do pecado o divertia, o levava a permanecer nele, continuando a existir apenas no “mundo visível”. Este retrato não pode, por isso mesmo, ser uma mimesis, uma imitação do real, do Dorian Gray enquanto Dorian Gray, jovem e inocente; pois, para além de tomar vida própria e de se tornar numa segunda presença, o fim da imitação, como nos diz Aristóteles, é o prazer, um prazer de natureza catártica, prazer que provoca a purgação e a purificação das nossas emoções, das nossas paixões, contribuindo decisivamente para a reposição de um estado de equilíbrio interior do homem. Ora, não se verifica purificação de género algum em Gray, nem o retrato permanece apenas uma simples imitação do real, portanto deixa-se de parte a ideia de mimesis aceitando-se apenas a ideia de representação, da segunda presença já referida anteriormente.
Mas qual a justificação de um quadro que está em constante mudança? Será a mudança mais importante e digna no mundo da arte do que o que permanece sempre idêntico? Sem dúvida: “O que a arte realmente espelha é o espectador, não a vida.”. É por esse motivo que o retrato de Gray está sempre em mutação, porque espelha o seu espectador (emoções, sensações, ideias…), constituindo a mutabilidade que torna uma obra única e verdadeiramente artística. A moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. O vício ou a virtude são, deste modo, para o artista apenas matérias de arte. A arte tem como único objectivo, pois, a admiração, admiração esta que Gray valoriza de forme incontestável. É esta a justificação para algo inútil como o é a arte: a admiração e a dádiva da mudança constante, porque o que interessa mesmo é o que muda e não o que é imutável. Todas as mudanças ocorridas enigmaticamente no retrato são, pois, fruto da paixão exacerbada de Gray pela pintura, pelo retrato que se torna um espelho do seu interior.
“Por vezes, ouve-se dizer que a Beleza é apenas superficial. Talvez seja. Mas, ao menos, não é tão superficial como o Pensamento. Considero a Beleza a maravilha das maravilhas. Só os fúteis não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível.” Estas frases surgem ainda no início da obra O Retrato de Dorian Gray e vão influenciar o protagonista ao longo do seu percurso. A obra inicia-se com um quadro que reflecte toda a existência vital do jovem Gray, um quadro que funciona como um espelho. No entanto, progressivamente, o quadro vai envelhecendo, mostrando quer o passar dos anos, quer a corrupção da alma de Gray que, pelo contrário, se mantém sempre jovem, como se o quadro adquirisse vida própria ou tivesse mesmo “roubado” essa vida ao protagonista que lhe servira de modelo. No curto excerto que analisamos, é perceptível que neste romance se aliam as preocupações estéticas com os paradoxos morais, numa reflexão cuidada sobre o envelhecimento, o prazer, o pecado e o castigo.
Apresenta-se aqui, deste modo, a questão da representação. Com a representação abrange-se uma segunda presença da realidade conhecida (como o próprio conceito representar já indica), pois compreende toda a estrutura da vida psíquica (sensações, percepções, imagens, ideias…). A representação confere, nesta medida, um novo modo de ser, liberto das determinações e limites com que se apresentava na natureza, no seu estado original, primário. Assim, como diria São Tomás, a representação adquire uma nova perfeição na medida em que pode contemplar, inscrita em si mesma, toda a ordem universal e suas causas. Para que a representação atinja o efeito de perfeição pretendido, é necessária uma reciprocidade de acção e reacção entre dois pólos: o sujeito e o objecto. O que se terá passado no caso deste romance foi uma reciprocidade demasiado forte (quer por parte do pintor, que fez desse quadro a sua obra-prima – “Um sonho de forma em dias de pensamento.” -; quer por parte do modelo, o jovem Dorian, que vê nele o seu espelho e o admira apaixonadamente), acabando o retrato por ganhar vida, por se tornar também ele sujeito. Mas torna-se necessário explicitar um pouco melhor a ideia de segunda presença já acima referida: só existe representação de alguma coisa invisível ou ausente; e alguma coisa invisível ou ausente só pode ser conhecida como tal se e na medida em que for devidamente representada. Existem, portanto, dois tipos de presença: a presença directa e efectiva que assinala e garante a presença de outra coisa que em si mesma está ausente; e por outro lado a presença indirecta e mediata que está assegurada e garantida pela primeira. Mas como saber que um conhecimento meramente representativo e, portanto, indirecto, é verdadeiro, isto é, corresponde à verdade em si mesma? O retrato de Gray deixou de ser apenas indirecto, acabou por se verificar uma mútua ralação vital entre a presença directa e efectiva e a presença indirecta e mediata; embrenharam-se, confundiram-se. O retrato ganha vida, torna-se, como Gray afirma, o rosto da sua alma. É sujeito activo da vida do sempre jovem Dorian: apodera-se das suas feições e rouba-lhe todas as modificações de que seria vítima com o passar do tampo, envelhecendo em vez de Gray e revelando toda a sua decadência interior, como um diário escrito de forma mágica. Como diz Dorian Gray: “(…) Continha o segredo da sua vida e revelava a sua história. Ensinara-lhe a amar a sua própria beleza. Ensinar-lhe-ia a odiar a própria alma? (…)”. Na verdade, a observação do quadro resultava para Gray numa sensação de prazer, numa comparação desmedida entre o rosto belo da obra de arte em que se tornara e dos estigmas de corrupção que o retrato revelava como uma sátira. Mantinha o seu rosto imaculadamente perfeito mas o retrato anunciava as cicatrizes do tempo e do pecado. Mas o prazer que tal visão e até mesmo estudo minucioso lhe provocava nada tinha de catártico; pelo contrário, mostrava-se um prazer desumano, assombroso, que em vez de o libertar do pecado o divertia, o levava a permanecer nele, continuando a existir apenas no “mundo visível”. Este retrato não pode, por isso mesmo, ser uma mimesis, uma imitação do real, do Dorian Gray enquanto Dorian Gray, jovem e inocente; pois, para além de tomar vida própria e de se tornar numa segunda presença, o fim da imitação, como nos diz Aristóteles, é o prazer, um prazer de natureza catártica, prazer que provoca a purgação e a purificação das nossas emoções, das nossas paixões, contribuindo decisivamente para a reposição de um estado de equilíbrio interior do homem. Ora, não se verifica purificação de género algum em Gray, nem o retrato permanece apenas uma simples imitação do real, portanto deixa-se de parte a ideia de mimesis aceitando-se apenas a ideia de representação, da segunda presença já referida anteriormente.
Mas qual a justificação de um quadro que está em constante mudança? Será a mudança mais importante e digna no mundo da arte do que o que permanece sempre idêntico? Sem dúvida: “O que a arte realmente espelha é o espectador, não a vida.”. É por esse motivo que o retrato de Gray está sempre em mutação, porque espelha o seu espectador (emoções, sensações, ideias…), constituindo a mutabilidade que torna uma obra única e verdadeiramente artística. A moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. O vício ou a virtude são, deste modo, para o artista apenas matérias de arte. A arte tem como único objectivo, pois, a admiração, admiração esta que Gray valoriza de forme incontestável. É esta a justificação para algo inútil como o é a arte: a admiração e a dádiva da mudança constante, porque o que interessa mesmo é o que muda e não o que é imutável. Todas as mudanças ocorridas enigmaticamente no retrato são, pois, fruto da paixão exacerbada de Gray pela pintura, pelo retrato que se torna um espelho do seu interior.
Vanessa Mendes Martins, aluna do 3º ano da Licenciatura de Filosofia da U.B.I. Trabalho realizado para a disciplina de Estética