Este comportamento por vezes vai tão longe que se criam verdadeiros ódios de departamento disfarçados de pós modernos versus analíticos. Ora bem, não pretendo aqui mostrar que, afinal de contas, we are the world, we are the children e o que faz falta para animar a malta é a fraternidade e amizade, como se tudo tivesse lugar em tudo e tudo passasse a valer por igual medida. O que está aqui em causa é que a má atitude a ter, tanto em filosofia como em qualquer outro saber, é a de se criar ódios de estimação sem indagar porque é que este ou aquele filósofo, esta ou aquela corrente, não presta. Esta má atitude assenta na base expressa do seguinte modo: ou sou a favor de X, ou sou contra X. Se sou a favor, vou ler tudo sobre X. Se sou contra, então não leio uma linha sequer porque pura e simplesmente não vale a pena. Por outro lado, podemos desde já esquecer a pretensão de nos tornarmos ao mesmo tempo especialistas em filosofia analítica, pós-modernismo, grego e alemão. Este imenso saber só está ao alcance de muito poucos, se é que o está verdadeiramente para alguém. Temos, antes de tudo, de saber viver com as nossas limitações e, sobretudo, ter boas orientações para saber por onde começar. E há dois bons pontos de partida para aprender filosofia:
1- Conhecer um pouco a sua história
2- Saber o que actualmente está na ordem do dia da investigação filosófica.
Para começar, no que respeita ao ponto 1, provavelmente não faz sentido começar a estudar por uma história da filosofia que esteja desactualizada. Uma boa introdução à filosofia, mais ou menos extensa, é um bom ponto de partida para conhecer o desenvolvimento dos principais problemas da filosofia. Um dicionário de filosofia ajuda muito neste primeiro passo. E assim começamos a dar os primeiros passos. Normalmente uma boa história da filosofia, bem organizada, vai directamente aos problemas e autores centrais, indicando bibliografia primária e secundária para, mais tarde, aprofundarmos os temas que mais nos interessam.
Para saber o que mais se investiga actualmente em filosofia, uma boa fonte, é consultar os departamentos de filosofia das melhores universidades do mundo. Só a título de exemplo, se fizermos tal exercício, verificamos que estudar Heidegger ou o pós modernismo em filosofia hoje em dia, ocupa somente 10% de toda a investigação feita, pelo que podemos depreender que os autores pós modernos ou Heidegger, apesar de podermos sofrer de orgasmos intelectuais com estes autores, não são, na verdade, aqueles que mais se aprofunda e investiga em filosofia, nem aqueles que se cita na bibliografia mais relevante actualmente. Não quero com isto dizer que um autor como Gilles Deleuze não seja importante. É-o certamente. Muito mais é Heidegger. Acontece que estes autores são motivo de investigações muito específicas para podermos começar a estudar filosofia por eles. E é um erro pedagógico grave começar a ensinar filosofia pelas investigações mais específicas e particulares, quando temos um enorme campo de investigação noutras áreas que podem mais tarde despertar interesse para um autor ou outro. No caso, o facto destes autores serem motivo de interesses mais específicos, não é porque sejam autores mais difíceis que Descartes, David Hume ou Daniel Dennett. Acontece que possuem menos relevância para o campo de investigação que hoje se faz. Saber o que as grandes e melhores universidades do mundo investigam é um apelo à autoridade, mas se não confiarmos em quem sabe e mais trabalha, que vai ser de nós e do nosso estudo? Como em tudo na vida, também em filosofia, não podemos ter a pretensão que podemos partir do topo, desconhecendo por completo a base. Recorrendo a um pequeno exemplo, não faz grande sentido estar a discutir argumentos de Heidegger sem saber, sequer o que é um Modus Tollens. Podemos pensar que em momento algum da sua obra, Heidegger se referiu ao Modus Tollens, mas acontece que, para discutir argumentos temos de saber as regras da discussão e essas envolvem regras simples como o Modus Tollens. Por esta razão, se nos dispomos a discutir Heidegger desconhecendo a gramática da discussão racional, acabamos por fazê-lo de modo obscuro, ininteligível, muitas das vezes roçando um lado romântico e poético, como se filosofar dependesse única e exclusivamente deste talento que nem todos possuem. Talvez por esta razão, alguns departamentos de filosofia, produzam mais talentos em poesia e teatro do que propriamente em filosofia, imagem lírica, bonita, mas completamente errada da filosofia e que por aí prolifera.
Mas uma coisa podemos ter como certa: alguém que se disponha a discutir a filosofia de Heidegger, tem de ler a obra de Heidegger, pelo menos os textos de referência. Disto ninguém duvida. Do mesmo modo que alguém que queira discutir os argumentos de Peter Singer ou Bertrand Russell, terá de ler os seus livros mais importantes. Caso contrário não saberá do que está a falar e mais não faz do que a expressão de um ódio de estimação qualquer, denunciando uma má relação com o saber. E a relação é má porque se estudou Heidegger só para se evidenciar e não porque é movido pela curiosidade intelectual e está realmente preocupado com os problemas. Quem, recorrendo a mais um exemplo, está interessado em estudar metafísica, pode e deve ler as obras de Heidegger, mas não pode ignorar a obra de Russell. Se o faz passa somente por conhecer uma terça parte do problema. Se não o faz (como eu que não li a maior parte da obra de Heidegger) deverá assumi-lo claramente, mostrando que o seu interesse no estudo da metafísica é, por enquanto, x e não y. Se quiser avançar no estudo, o mais provável é que tenha de ler Heidegger, mais que não seja, para compreender que a obra do autor não é a mais relevante, se assim for.
Mas, independentemente do estudo que possamos fazer em filosofia, a atitude que nunca é de esperar, é a de banalizar os autores e a filosofia, ou pelo menos parte dela, como se estivéssemos a falar de um vizinho que não gostamos somente porque comprou um Mercedes quando nós nem dinheiro para um Renault temos.
As consequências de pensarmos que descobrimos a verdade somente porque lemos uma parte de um dos livros de Platão em Grego, são devastadoras, pelo menos se formos professores e pretendermos ensinar algo do que sabemos. E são devastadoras porque não incentivam os neófitos ao estudo da filosofia. O melhor que pode provocar no jovem aprendiz é maravilhar-se com a sabedoria do professor e pouco mais. Ensinar envolve os nossos afectos, mas creio que os envolve no sentido da maior imparcialidade no que temos a ensinar e no modo como o fazemos. Quem gosta realmente de ensinar, mantém a atitude de ir para além daqueles que são os seus autores preferidos, sempre com o objectivo de revelar ao aluno esse grande universo que é a filosofia, partindo de uma base que seja sustentável para alguém que quer começar a aprender filosofia. Tudo isto, para além dos nossos gostos e ódios de estimação. A filosofia pertence a todos e a todos deve ser ensinada de modo imparcial. E para objectar argumentos podemos sempre recorrer a uma redução ao absurdo.