A primeira volta eleitoral para o cargo de
presidência da França, não representa, ou não põe em causa, tão só, as
esperanças do povo francês em relação ao sempre-por-fazer solucionamento
dos seus problemas geograficamente circunscritos ou nacionalmente
auto-centrados e auto-geridos. Uma das características fundamentais da
globalização, característica esta que faz parte mesma do fenómeno e conceito da
globalização - que atinge o seu ápice e se solidifica, com todas as suas
contradições, na própria UE (e é a UE que está aqui em causa) - pode ser, para
melhor ser compreendida, desdobrada reflexivamente em dois pontos fundamentais
que no fundo representam apenas um. Em primeiro lugar, podemos denunciar uma
certa incapacidade cognitiva por parte dos cidadãos (incapacidade esta que,
perspectivada positivamente, se converte em distinta capacitação cognitiva
relativamente a outro passado histórico - passado este, como evidente, pré-UE)
de na sua ponderação relativa à escolha dos próximos eleitos negligenciarem o
efeito dessa escolha fundamental no "palco do mundo" - assim, os
Estados-nações não se distinguem face a si mesmos, mas em relação a outros
Estados-nação, tendo ainda em conta um emaranhado de instituições
supranacionais e pontuadas resistências locais que têm por efeito provocar,
realizar e justificar mesmo a "ordem do discurso" dos mais altos
representantes dos Estados-nação, em suma, "cumprir a agenda".
Mas a grande contradição que aqui subsiste, e que
perfaz o "nó da Europa", é que os autênticos participantes são
simultaneamente e de forma irremediável, os mais autênticos espectadores.
Assim, os franceses estão a eleger aquele que pretendem que seja o seu mais
alto representante das suas expectativas face aos seus próprios interesses (ou
na retórica nacionalista, aqueles que são "os mais altos interesses da
França, do povo francês"; isto, ainda que o que esteja em causa seja, p.
ex., o posicionamento político do governo francês face à UE), mas nós,
não-cidadãos-franceses, que não temos a capacidade de eleger para este país, é
que somos os autênticos participantes deste "circunscrito palco
eleitoral". Isto porque, em primeiro lugar, nós que somos,
contraditoriamente, meros espectadores de todo este espectáculo democrático
"limitado", somos simultaneamente os mais vocacionados - pela nossa
distância estrutural - para defender os interesses não tão só de um público
nacional, mas de um público autenticamente europeu e mesmo, mas mais
distanciado, público global. Podemos sugerir que há um conflito irreprimível e, atenção, perfeitamente legítimo, entre o eleitorado francês nesta eleições particulares e a totalidade dos cidadãos europeus excluindo o povo francês. Isto, como é natural, devido ao "peso" da França no que respeita à condução das políticas que se deliberam e saem de Bruxelas. "Peso" este que assegura, precisamente, a legitimidade das eventuais mobilizações em favor de maior integração democrática ao nível da UE tida como um todo.
Assim, e referindo especificamente ao candidato e
presumível vencedor das presidenciais François Hollande, justifica-se
perfeitamente que seja na sua eleição que resida a esperança dos que pretendem
reabilitar uma alternativa social-democrata relativamente ao conservadorismo
neoliberal que vai varrendo toda a UE, com a exportação forçada de um suposto
modelo económico germânico, a constitucionalização do limite à dívida pública,
o desinvestimento do Estado na economia através dos mesmo meios de
"contenção" das dívidas públicas...
O problema está assim unicamente no facto de que
esta esperança, que perfaz a essência da democracia - o poder de escolher entre
várias e diversificadas alternativas e esperar que a sua escolha seja a escolha
de todos - está, tanto contra a própria "utopia da UE" como contra as
expectativas reais/concretas dos não-cidadãos-franceses que vêem as suas
próprias expectativas (a tal esperança que perfaz o âmago da democracia) serem
subsumidas pelo monopólio democrata do povo francês.
Como vêem, a Europa não está cumprida porque a
prometida união política ainda não foi realizada - ainda nem sequer começou...
É absolutamente frustrante, e devia ser fonte de maiores mobilizações cívicas
ao nível desta Europa (será que a UE ainda nos assusta!?), o facto do nosso
destino, enquanto cidadãos europeus (que ambicionamos o seu projecto), estar
ainda, como neste caso das presidenciais francesas, dependente de velhas
estruturas que impedem a realização de uma verdadeira "audiência
europeia".
David Santos.
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