O alerta para as nefastas consequências da excessiva
racionalização da sociedade contemporânea percorreu quase (senão mesmo) todas
as correntes filosóficas do século precedente. Este alerta foi feito pelos mais
diversos filósofos. Filósofos que vão desde Husserl até Lukács, passando por
Weber, Heidegger, Adorno e Horkheimer; podendo até ser também encontrado nos
filósofos mais tardios, tais como Marcuse, Jonas, Ellul, Foucault, Habermas, e
até mesmo em Virílio, Sloterdijk e Zizek. Para a Filosofia, a importância do
problema da racionalização excessiva é evidente. Mas até que ponto aproveitou a
sociedade contemporânea a problematização filosófica da racionalidade
técnico-científica?
Numa análise dos fundamentos do pensamento económico sob o
qual se sustenta toda a sociedade contemporânea (tal como no texto que o David
Santos escreveu sobre Latouche se demonstra) encontrar-se-á esta racionalidade
técnico-científica. O mesmo tipo de racionalidade que preza pela objetividade,
pelo facto, pela eficiência, pelo cálculo frio e maquinal. Encontrar-se-á a
mesma racionalidade que toma o humanismo como um subproduto; que o caracteriza
como o empecilho (constrangimento) aos desenvolvimentos técnico-científicos. Veja-se
a título de exemplo o caso das polémicas em torno dos estudos que envolvem
células estaminais na Europa e nos Estados Unidos.
Contudo (e paradoxalmente) é sob esta mesma racionalidade
que se edifica todo o sistema social no mundo ocidental. “Não sejam piegas…”
diz-se em Portugal, como quem diria: “Não comprometam a eficácia do sistema
económico técnico-científico com as vossas queixas, com esses vossos mesquinhos
sentimentos humanos”. “Deixem de apelar a um humanismo já ultrapassado,
estragam a eficácia do método pela razão escolhido”. E Portugal não é o único,
pois é esta mesma racionalidade quem pretende justificar as decisões tomadas
por esta Europa fora. Relembrando as célebres palavras de Husserl em A Crise das Ciências Europeias, parece
que – passados quase cem anos – ainda é caso para se dizer que “Meras ciências de factos criam meros homens
de factos”.
É flagrante esta deificação da racionalidade
técnico-científica pela política contemporânea. Ou o que é pior: é flagrante
esta deificação da racionalidade técnico-científica na política contemporânea.
E é aqui onde se encontra o cerne da questão, pois a essência do problema não
está apenas no carácter inumano deste tipo de racionalidade, ela encontra-se
também no mau uso que dela é feito.
Na retórica política é agora comum o apelo a um moderno pathos pela eficiência. Veja-se a título
de exemplo o conhecido “choque tecnológico” da propaganda política do governo
socrático. O apelo à eficiência científica tornou-se no paradigma central das
ideologias contemporâneas. A racionalização dos meios pela tendenciosidade
económica transforma consigo os fins almejados por um governo. Interessa hoje
cumprir com os números, não cumprir com os homens. A crise que se vive em
Portugal não é apenas uma crise económica, é também – e sobretudo – uma crise
do humanismo.
Ângelo Milhano.
3 comentários:
Peço as minhas desculpas pelo texto "atabalhoado", mas a primeira versão era demasiado longa e vi-me obrigado a cortar muitas coisas. No entanto a ideia fundamental está legível.
Ângelo Milhano
Vejamos isto, a racionalidade ou a razão, a ratio. Observemos esta razão a partir de sua condição matemática que não é outra senão a de submissão a operação da divisão. Uma divisão pode ser exata ou não, quando não o é, sobram-se os restos. Aquilo que junta, reúne , associa e dispõe é sempre a partir de uma condição ambígua, ou seja, exata ou não. Porém, a condição de ser exata nos diz algo que o valha para além da situação abstrata da matemática? Caso nos diga algo, é possível que o próprio fundamento da razão matemática ou não, inicia-se a partir daquela que por sua vez surge a partir da possibilidade concreta. Ora onde podemos chegar com isto senão na condição de que a própria razão é uma medida que oscila por entre duas possibilidades.Nosso problema quanto racionalidade humanista ou tecnológica não seria a mesma condição entre a possibilidade do resto e a pretensa exatidão estendida para além de seus muros??
Entendo... Mas creio que não se trata aqui de questionar a exactidão da 'razão' ou a natureza dela mesma (pelo menos não era essa a intenção do texto). Trata-se sim de questionar se existe na sociedade contemporânea uma consciência dos domínios do 'mundo da vida' nos quais não se pode aplicar a 'racionalidade' e os seus padrões de 'medição' (mensura) e 'eficiência'.
Foi logo desde os primeiros desenvolvimentos da revolução industrial que se instaurou nos âmbitos políticos uma retórica que apelava ao desenvolvimento de carácter técnico-científico (isto tanto no mundo capitalista como no mundo comunista). E desde ai a filosofia passou também a questionar as ilegítimas aplicações da racionalidade. Dos vários filósofos que o fizeram, o alerta para o perigo dos maus usos da racionalidade técnico-científica foi um ponto em comum (veja-se o trabalho dos filósofos citados logo no início do texto).
Portanto creio que se trata aqui de compreender se a sociedade do séc. XXI, herdeira do séc. da Iª e da IIª guerra mundial, herdeira da guerra fria, da bomba atómica, de chernobil, etc., aprendeu alguma coisa da filosofia do séc. XX e da sua crítica da racionalidade técnico-científica. Não se trata aqui de menosprezar essa mesma racionalidade, trata-se sim de saber qual é o seu lugar, e sobretudo quais são os limites da sua aplicação.
Tendo isto em mente, e aplicando-o aos 'novos' usos (político-economicistas) da racionalidade técnico-científica, parece que o mundo ocidental contemporâneo nada aprendeu da crítica filosófica da racionalidade técnico-científica. Mas creio que qualquer um dos filósofos citados no texto o poderá explicar melhor que eu.
Muito obrigado pelo comentário; saudações:
Ângelo Milhano
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